Raízes que dançam
A música de dança electrónica tem sido um dos principais agentes da redescoberta da música jamaicana dos anos 60 e 70, originando uma miniavalanche de compilações e reedições de reportório que, na maior parte, é pela primeira vez comercializado entre nós. É um património de uma riqueza espantosa, um filão aparentemente inesgotável, onde se descobrem novas preciosidades de cada vez que se remexe nos arquivos.
Lee "Scratch" Perry tem sido uma das estrelas dessa redescoberta ao ponto de nesta década haver mais reedições deste "Phil Spector jamaicano" que dos Beatles ou dos Stones. "Rude Walking" é outra peça de colecção para os fãs, que, por mais reedições que já possuam, encontrarão sempre mais meia dúzia de temas que só estão nesta (o que não admira, já que Lee Perry terá passado anos a editar em média um single novo por semana). Mas tem o benefício adicional de ser uma boa introdução para os leigos, em contraste com o triplo "Arkology", que é mais para especialistas. "Rude Walking" reúne singles desde 1968, quando Lee "Scratch" Perry criou a sua própria editora, Upsetter, até que, em 74, abriu o seu estúdio Black Ark. Sendo a sua actividade principal a de produtor, Perry gravava sobretudo temas cantados por outras vozes, e um dos principais pontos de interesse desta compilação está em centrar-se em material cantado por ele mesmo, num estilo pitoresco, entre a herança dos crooners soul americanos e as idiossincrasias do seu carácter excêntrico (Orange Street, distri. Mundo da Canção, 8).Uma das vozes que colaborou de perto com Lee Perry foi Max Romeo. O seu primeiro êxito internacional, com o single "Wet dreams", data de 1969, mas foi entre 1973 e 1977, justamente o período em que trabalhou sob a direcção de Perry, que a sua carreira atingiu um fulgor que não voltaria a igualar (a separação profissional foi, de resto, litigiosa com Perry a dedicar "White belly rat" a Max e este a responder-lhe com "Judas"). É essa melhor fase da carreira de Romeo que surge espelhada em "Open the Iron Gate", uma compilação que mostra um cantor educado no gospel, mas convertido ao socialismo do People National Party do presidente Michael Manley (por quem chegou a fazer campanha) e ao lado mais apocalíptico da religião rastafari. O seu misto de espiritualidade e ideologia eram notáveis, mas não é menos evidente a sua dependência do talento do momento de Perry. Daí o contraste entre a inspiração de títulos que marcaram a música jamaicana nos anos 70, como "Tacko", "Three blind mice" e "Fire fe the vatican", e outras canções nesta compilação que não ultrapassam os lugares-comuns da época (Blood & Fire, distri. MVM, 7). Max Romeo foi um dos expoentes do chamado "roots reggae", ao qual a editora Trojan dedica a antologia "Roots Box Set". A expressão "roots reggae", no entanto, não designa nenhum estilo musical, mas refere-se ao conteúdo das letras, especificamente a todas aquelas que propagam a doutrina rastafari. Essa crença ganhou a ribalta internacional com Bob Marley e êxitos como "Roots reggae rock"; porém, longe de se reduzir à estrela do reggae, iluminou a maior parte da música jamaicana dos anos 70. É essa inspiração mística que se descobre nesta compilação, onde, ao lado de nomes mais conhecidos como o de Romeo, Horace Andy e Peter Tosh, se encontram preciosidades de ilustres desconhecidos, como a adaptação do clássico "The lion sleeps tonight" por Ras Michael & The Sons of Negus, ou a introdução de cordas orientalistas a contracenar com vocais maníacos dos Shadows em "Brother Noah" (Trojan, Música Alternativa, 9).A antologia dedicada ao "roots reggae" faz parte de uma colecção de caixas temáticas da Trojan, cada uma com três CD e 50 faixas. Vários volumes já foram lançados entre nós e mais dois passam a partir de agora a estar também disponíveis. "Tribute to Bob Marley Box Set" é um conjunto de adaptações, versões e tributos ao defunto monstro sagrado do reggae, um projecto bem-intencionado, mas que obviamente não lhe presta a devida justiça, ao integrar faixas como uma versão redundante de "Get up stand up" pelos Big Youth, ou excursões menores no território soul como "Mellow mood" por Judy Mowatt (Trojan, Música Alternativa, 4).Completamente diferente é o caso de "Instrumentals Box Set", uma retrospectiva da música de baile não cantada, particularmente popular nas décadas de 60 e 70. O som é quase sempre cru e primitivo, mas a amostra revela uma imaginação e um vigor festivo ainda hoje contagiantes. O espectro em termos de estilos vai do ska ao reggae, passando pelo rocksteady, mas muitas destas peças introduzem elementos estranhos e mesmo delirantes, que testemunham o espírito de liberdade criativa que os músicos jamaicanos então reservavam para os instrumentais. Temas como "El pussy cat ska" por Ronald Alphonso, em que riffs de sopros contracenam com coros felinos, "Scarface", onde Boris Gardiner introduz um acordeão na mistura rocksteady, ou o toque de alvorada que serve de preâmbulo a Carl Bryan em "Way of life" fazem desta compilação algo de inclassificável, entre o genial e o foleiro (Trojan, Música Alternativa, 7).