"Fui escolhida pelo português"
Descobriu Portugal por ser antifascista e de extrema-esquerda. Entrou na literatura portuguesa pelo teatro. Gil Vicente foi o seu primeiro grande amor. Depois, encontrou Camões, Pessoa, Garrett, Eça, Aquilino, Nemésio, Eduardo Lourenço, Saramago. Mas também os do outro lado do mar: Machado de Assis ou Jorge Amado. Aos 79 anos, a lusitanista italiana Luciana Stegagno Picchio é uma das vozes mais consideradas - e amadas - no espaço da lusofonia. Mas em conversa com o PÚBLICO não deixou de criticar a situação dos Estudos Portugueses, em Itália: "O Estado português faz pouco. Nem sequer temos um Centro Cultural em Roma."
Um dia, o escritor brasileiro Murilo Mendes escreveu: "Luciana, para mim, constitui 'também', um espectáculo, do qual ela própria é autora, actriz, encenadora. Pertence à zona do teatro sem teatralidade, espontânea, simples, dinâmica, erudita mas não maçadora, irónica, sarcástica, rica de 'sense of humor'; contestadora pacífica; terrestre e alegórica."É esta lusitanista italiana, Luciana Stegagno Picchio, de 79 anos, que hoje é homenageada na16ª edição do Festival de Almada, antes da representação da "Boda dos Pequenos Burgueses", pelo Teatro da Malaposta, numa cerimónia que contará com a presença de Joaquim Benite, Luiz Francisco Rebello, Yvette Centeno entre outros. Em conversa com o PÚBLICO, Luciana comentou assim o retrato que dela traçou o escritor Murilo Mendes: "Essas coisas são muito artificiais, agora descobri que é preciso dizer a verdade. Nós fomos educados burguesmente a dizer mentiras, mesmo no sentido bom. A minha mãe", confessa, "dizia-me: 'não deves dizer isso porque entristece o teu pai'. Agora os nossos filhos, os nossos netos dizem coisas brutais. A verdade é que para chegar aqui tive muita sorte."- Mas o que é a verdade?- Não há a verdade, há verdades. Que têm que ver com a passagem do tempo. Num momento pensamos, acreditamos numa coisa, noutro já vemos as coisas de outra maneira. - Acredita em Deus?- Pouco. Talvez acredite mais depressa no Diabo, como a minha mãe [risos]. Não acredito em Deus mas quando perco qualquer coisa penso sempre em Stº António.- De Pádua ou de Lisboa.- Ele tem o dom da ubiquidade. Como toda a gente que não é religiosa sou muito supersticiosa.Desde muito cedo que ouviu falar de Portugal. "Em minha casa falava-se de tudo. O meu pai, que era advogado e escritor, falava 30 línguas." Luciana licenciou-se em Arqueologia - "porque pintava um pouco, desenhava bem, queria fazer história da arte, queria fazer escavações com aquilo tudo" porque o pai a aconselhou: "Tira um curso onde possas ensinar latim e grego" - uma língua que não lhe era completamente estranha, antes pelo contrário. Desde muito nova, ouvia o pai, citar de cor a "Ilíada". Estamos em 1942-43, com os anos de fogo da II Guerra Mundial. A família tinha-se para Roma - Luciana, nasceu em Alessandria - a mesma cidade de Umberto Eco e com quem convive de perto - no Piemonte, norte de Itália, em 1920, no seio de "uma família burguesa, muito culta", como ao longo da conversa repete várias vezes. A experiência do conflito é dura. Para a relembrar, Luciana baixa o tom de voz. "O meu pai era um germanista, tinha um mito da Alemanha. Rapidamente, tivemos a consciência de que, apesar de sermos seus aliados, a Alemanha era o grande inimigo. Eu e o meu irmão, tínhamos uns 18 anos, tornámo-nos gente da extrema-esquerda." Maoístas? Trotskistas? "Nem sabíamos, não havia nada, nem partidos. O que éramos era antifascistas ("só no final da guerra, é que nos tornámos socialistas, do Nenni"). Eu fui portuguesa sendo antifascista, muito antes da literatura", revela. "É que durante a guerra apareciam em minha casa três portugueses: um era o irmão da Maria Barroso, o Vergílio Barroso, mas também Sebastião da Silva e José de Albuquerque: eram todos matemáticos e todos eram de extrema-esquerda. Foram eles que me ensinaram português."A relação de Luciana com Portugal é de tal forma forte que, na introdução à "História da Literatura Brasileira", escreveu: "Portugal é o meu trabalho, o meu quotidiano, terra de escola e língua de todos os dias. Faz parte parte da minha acção do mundo. Muitas coisas até aprendi em português." Comovida, reafirma: "Sim é verdade. Mas o contrário também é: não fui que escolhi o português - eu que é que fui a escolhida." Finais dos anos 60. Na Universidade de Roma, trabalhava na "Enciclopedia dello Spectacollo". "Foi aí que começou o meu grande amor pelo teatro e foi a partir daí que escrevi a 'História do Teatro Português'" - a edição portuguesa saiu em 1969, na Portugália, encontrando-se há muito esgotada (acontece, em Portugal...): "Foi por aí que entrei na literatura portuguesa, pela porta do lado, pela porta do teatro, e pela literatura medieval."Entretanto, refere, já tinha "passado a minha prova de português, quando traduzi, em 1951, 'O Romance da Raposa', do Aquilino Ribeiro; era tão bonito que até foi adoptado nas escolas italianas". Mas acrescenta: "Eu, como muitos da minha geração, não tivemos mestres, éramos autodidactas. Efectivamente, descobri tudo sozinha."Volta aos palcos: "No princípio, quem me marcou imenso foi Gil Vicente, o meu grande amor, uma descoberta única. E disse com os meus botões: Gil Vicente não era traduzível. Ao contrário de Dante, como fez muito bem o Vasco Graça Moura. Dante é a língua, mas é também a ideia. Enquanto Gil Vicente é o diálogo, é o expressionismo linguístico, é outra coisa."Depois foram chegando Camões, Pessoa, Garrett, Camilo, Eça, ("mas Machado de Assis é muito maior", alude), Nemésio, Cardoso Pires, Saramago - "fui eu que ensinei português à minha nora, Rita Desti [tradutora de Saramago para italiano]", confessa com uma ponta de orgulho. A lista é interminável. A verdade é que Luciana convive com o mesmo à vontade de todos eles. Quando lhe perguntam porquê, responde humildemente. "Tive uma grande sorte na minha vida, fui encontrando pessoas que me deram um método." O encontro mais decisivo, depois da "filologia pura e dura italiana", é com o linguista norte-americano Roman Jakobson, em 1967, pouco antes de vir para a Faculdade de Letras de Lisboa dar um curso sobre teatro. - Luciana - dizia-me - tu tens que saber, os chavões, as terminologias. Mas o mais importante é aprenderes a ser como um alfaiate que faz um vestido: põe os alfinetes, que são as palavras; depois tira os alfinetes e fica o vestido. Nunca mais esqueceu a lição. "Debaixo do meu ensaio quero que se saiba que eu também sei o que é a genética, a narrativa, os chavões. O importante é que toda gente tem que perceber o que eu digo ou escrevo - odeio aquele discurso universitário, em que parece que só a pessoa que fala sabe do que está a falar."Mais: não faz hierarquias entre o que escreve para um congresso sobre o assunto mais complicado e os artigos que faz para o "La Reppublica", onde é colaboradora permananente: "Os dois têm a mesma dignidade literária."10 de Outubro de 1998. A ensaísta ligou para o "La Reppublica". Pediu para lhe reservarem espaço. "Fui muito atrevida. Acreditei sempre que Saramago ia ganhar o Nobel." Predestinação? "Não. Eu já tinha tido a experiência com Octavio Paz. O texto que escrevi sobre ele esteve dez anos à espera. Quando ele ganhou disseram-me do jornal: 'A prosa está perfeita'."Quando se lhe pergunta sobre outros nobelizáveis não tem dúvidas: "Se andei tantos anos a dizer que deviam dar o Nobel a Saramago, também o fiz com Jorge Amado - teria sido o primeiro." E Sophia? "É uma grandíssima poetisa mas Saramago é um Portugal diferente e não acredito naquela coisa que vocês dizem: 'Portugal é um país de poetas'. Não se pode dizer isso: é como pedir para me dizerem se gosto mais de batatas ou de salada".Depois, diz, com um brilho intenso nos olhos, verdes, "não posso esquecer Eduardo Lourenço - aquela capacidade de pensar, de criar do nada uma coisa, é maravilhoso. Nem são as coisas que ele diz mas a forma de escrever que me fascina. É único, em Portugal não há outro".Portugal, para a ensaísta, é também o fado, Amália, a luz de Lisboa, o Tejo, os amigos. Nunca pensou em trocar Roma por Lisboa - "eu sou italiana, gosto de viver mais à distância. É como casar com a amante! Mas Portugal é uma das minhas pátrias. Agora, há uma coisa: era pequeno de mais para mim, por isso é que fui descobrir o Brasil, que é um imenso Portugal."Ao contrário do que acontece com outros lusitanistas, que são reconhecidos tarde e a más horas, Luciana nunca passou por essa experiência. Lembra, com gratidão, a atribuição por Mário Soares da Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada: "É um grande amigo, é como Stº António está em toda a parte. Como dizem aqui: 'Deus está em toda a parte mas o Soares já lá esteve."Agora, no momento em que é de novo homenageada, não gostava de fazer críticas quanto à visibilidade dos Estudos Portugueses em Itália. Mas acaba por reconhecer: "Nós temos boa vontade e lutamos com muitas dificuldades. Mas o Estado português faz pouco e ajuda-nos muito pouco. Nem sequer temos um Centro Cultural em Roma: todos os países mais pobres o têm, Portugal, não tem. É uma pena."