Porto 2001 e o "efeito Guggenheim"
"Como projectar um edifício sério numa era de ícones ?"Com esta simples questão, Rem Koolhaas inaugura a memória escrita do seu projecto vencedor para a futura Casa da Música do Porto. No entanto, e quase sem nos darmos conta, essa simples questão encerra, em certo sentido, toda a problemática que atravessa actualmente a cultura arquitectónica europeia, e especialmente, a sua relação com as políticas de gestão urbana.As cidades médias europeias, económica e culturalmente "adormecidas" desde o fim dos anos gloriosos da industrialização do pós-Segunda Guerra, vítimas de uma crescente globalização que promove as cidades-capitais em nós de uma rede de relações planetárias, parece terem descoberto uma forma de sobrevivência e de (re)afirmação - aquilo a que podemos chamar de "efeito Guggenheim", naturalmente ligado à promoção de Bilbau no panorama cultural europeu.Naturalmente que a construção do Museu de Bilbau não constituiu um fenómeno isolado ou original na história da Europa recente. Bastará pensar em toda a política de promoção de equipamentos urbanos que François Mitterrand desenvolveu da década de 80 em Paris, de onde se destacaram o Grande Arco de La Defense, a Pirâmide do Louvre ou a nova biblioteca, que recebeu o nome do mesmo Presidente. Paris ganhava então uma projecção monumental, integrada num projecto global de transformação urbanística, só comparável ao que o Rei-Sol desenvolvera cerca de três séculos antes. Como qualquer acção centralizadora e pesada para o erário público, os "grand travaux" de Mitterrand tiveram um efeito perverso, especialmente fora do contexto da capital francesa. Outras cidades europeias, de média dimensão procuraram mimetizar o mesmo efeito aglutinador, muitas das vezes esvaziadas de um verdadeiro sentido estratégico, movidas mais pelo fascínio glamouroso da construção de um novo facto urbanístico do que por uma reflexão sobre os impactos locais de tais transformações. O caso de Lille e especialmente do conjunto urbano da nova gare de TGV, também ele pensado por Koolhaas, é neste sentido um claro exemplo - apesar da sua localização estratégica na Europa, o EuraLille ainda não provou a sua vocação como nó dinamizador da própria cidade.É por isso que, uma década volvida sobre estas experiências, a pergunta de Koolhaas ganha pertinência, parecendo constituir, para ele próprio, um motivo de auto-reflexão. Foi precisamente este arquitecto quem introduziu na cultura arquitectónica europeia o conceito de "bigness", apoiando-se no fascínio pelo poder mediático dos grandes edifícios híbridos das cidades globais, especialmente da "Nova Iorque delirante", que descobriu enquanto arquitecto em início de carreira.Conceitos como "bigness" vêm assim lançar um novo desafio, dentro de uma Europa cada vez mais cosmopolita, por um lado, e culturalmente dividida, por outro - a introdução, neste processo, de uma lógica americanizada de promoção de ícones arquitectónicos que constituem, antes de mais, ícones turísticos das próprias cidades. De facto, o "turismo cultural", essa indústria limpa e próspera inventada pelas sociedades pós-industriais, e que proliferou do outro lado do Atlântico, parece agora contagiar essas cidades europeias "adormecidas", acordando-as para o sonho de um novo protagonismo cultural. Esse sonho é naturalmente legítimo, já que as diferentes cidades europeias, e sobretudo as de média dimensão, sempre tiveram ao longo da História uma especificidade cultural que, tendencialmente, se foi esbatendo nas últimas décadas e que importará resgatar. Nesta "era de ícones", a questão fulcral coloca-se precisamente na "seriedade" (a palavra escolhida por Rem Koolhaas) dos edifícios-símbolo por ela gerados, aqui entendida pela capacidade de os mesmos se tornarem estruturantes e catalisadores de outras mais-valias urbanas.Hoje, já não se sabe se é a cidade que gera estes edfícios, ou se são eles mesmos os geradores da cidade. Os métodos seguidos pelo planeamento moderno não nos garantiram que a lógica linear - primeiro o plano, depois a arquitectura - seja mais eficaz que a lógica inversa. Apesar de todos os planos estruturantes desenvolvidos pela Bilbau Ria 2000, não restam dúvidas que a aposta primordial na implementação do museu do americano Frank O. Ghery gerou dinâmicas indispensáveis à implantação das restantes políticas urbanas. Simultaneamente permitiu (re)descobrir uma cidade economicamente decadente, mas profundamente marcante na orgulhosa cultura basca. Simultaneamente, introduziu a lógica do investimento privado (ainda que externo) na promoção cultural da cidade, demonstrando que esta não é necessariamente oposta, mas antes complementar, das obrigações estatais ou municipais nesse domínio. Neste sentido, alguma coisa mudou nas tradicionais políticas culturais europeias, durante esta década.Da mesma forma, algo parece estar a mudar na própria programação e implementação dos espaços culturais europeus, como no caso dos Museus, especialmente os que se dedicam à Arte ou História deste século. Tradicionalmente integrados no tecido da cidade ou numa relação bucólica com paisagens naturais - bastará pensar no Stedelijk Museum de Amesterdão ou no Luisiana de Copenhaga -, os museus de Arte ou Cultura Contemporânea parecem, hoje, ganhar uma nova relação com a cidade, protagonizando situações de reconversão de áreas degradadas, assumindo-se como geradores de uma urbanidade perdida ou de um cosmopolitismo emergente. Bastará pensar, por exemplo, nos mais recentes Museu de Arte Contemporânea de Helsínquia (Steven Holl), no Museu da Cultura Judaica de Berlim (Daniel Libeskind) ou na Nova Tate Gallery de Londres (Herzog & De Mouron) a inaugurar no fim do século.O Porto, cidade média europeia, estratégica no eixo atlântico, tornou-se hoje num lugar central deste debate tão rico quanto contraditório. Em menos de uma década, a cidade vê concretizados no seu eixo de desenvolvimento poente um novo Museu de Arte Contemporânea e uma nova Casa da Música, projectados por dois arquitectos de vulto e seguindo políticas culturais também elas inovadoras no nosso contexto económico e social - o envolvimento da chamada sociedade civil e o aproveitamento da nomeação para Capital Europeia da Cultura em 2001. Por outro lado, estes dois ícones arquitectónicos encerram, de uma só vez, toda a problemática descrita. O museu de Álvaro Siza estabelece uma continuidade nessa tradição de espaço contextual, profundamente enraizada na nossa cultura sul-europeia, guardando uma força interior que se projecta para fora nos magníficos momentos em que olha o belo jardim de Serralves. É assim uma obra serena e intimista. A nova Casa da Música, noutro sentido, estabelece uma ruptura de forma e escala com um contexto urbano que nunca chegou a ter força para o ser verdadeiramente, dando-lhe, por isso, um sentido, um futuro. É uma obra que se esventra para o exterior convidando-o a invadi-la, a absorvê-la. As duas têm uma dimensão universal, essencialmente porque potenciam a sua dimensão local. Aqui, o "efeito Guggenheim" não deverá constituir-se como uma enfermidade, mas antes como uma cura, sedimentando, neste lado recente da cidade, uma pluralidade funcional e morfológica bem distinta da homogeneidade do centro histórico. Numa era de ícones, os edifícios tornam-se sérios se fizerem sentido e se souberem introduzir novos sentidos no nosso percurso cultural.