Stanley Kubrick posto a nu
"Eyes Wide Shut", o filme que Stanley Kubrick acabou pouco tempo antes de morrer, estreia esta semana nos EUA, rodeado pelo perfume do escândalo e da controvérsia - o que, por aquelas bandas, costuma ser sinónimo de sexo... Para ajudar à festa, o autor do guião resolveu escrever um livro em que, entre outras coisas, criticas o resultado final do trabalho e os métodos do realizador.
Com a estreia de "Eyes Wide Shut", a última obra do cineasta norte-americano Stanley Kubrick (1928-1999), marcada para a próxima sexta-feira, dia 16, o autor do guião do filme, Frederic Raphael, parece ter decidido contribuir para a notoriedade e controvérsia daquela que é há meses uma das películas mais aguardadas do ano. Escreveu um artigo na revista "New Yorker" e um livro, ambos sobre o seu trabalho com o realizador. E tudo estaria bem se Raphael não tivesse optado por expor pormenores da vida privada de Kubrick, apresentando-o como um artista autoritário e egocêntrico e como um judeu recalcado. A família e os amigos do realizador não gostaram."Eyes Wide Open - A Memoir of Stanley Kubrick", editado pela Ballantine Books, acaba de chegar às livrarias norte-americanas, explorando a curiosidade existente em torno da estreia de "Eyes Wide Shut". Nesta espécie de biografia não autorizada, Raphael defende a tese da primazia do argumentista na elaboração daquilo a que chama a "substância de um filme". Não esconde sua insatisfação com o resultado final do trabalho de quase dois anos, acusando Kubrick de, à força de inúmeros ajustes e correções, ter estirpado muita da ambiguidade do enredo e da profundidade psicológica das personagens do livro que deu origem ao filme. Recorde-se que "Eyes Wide Shut" resulta de uma adaptação para a Nova Iorque contemporânea de "Traumnovelle", um livro do austríaco Arthur Schnitzler sobre as fantasias sexuais de um jovem casal burguês da Viena dos anos 20, interpretado, no filme, por Tom Cruise e Nicole Kidman. E neste facto reside, de resto, parte da polémica, uma vez que, no artigo que escreveu para a "New Yorker", Raphael acusou Kubrick de o ter também obrigado a retirar as referências judaicas presentes na história original. Sob o título "Stanley Kubrick, self hating jew", o texto garante que o realizador tinha uma verdadeira paranóia relacionada com a necessidade de se proteger dos gentios.Respondendo a esta crítica, o advogado de Kubrick afirmou já que o realizador, ao introduzir estas alterações e ao convidar Cruise e Kidman para os papéis principais, apenas pretendeu dar ao filme um carácter universal. A família e os amigos do realizador, bem como a produtora de "Eyes Wide Shut", a Warner Brothers, já demonstraram publicamente a sua insatisfação relativamente à devassa pública de alguns aspectos pessoais da vida do autor de "Laranja Mecânica", "Lolita", "Shinning" ou "2001, Odisseia no Espaço", salientando que Kubrick sempre pugnara por manter afastada dos holofotes a sua vida privada. O realizador Steven Spielberg, por exemplo, garantiu não reconhecer no artigo da "New Yorker" "a voz de Stanley".Recheado de curiosidades sobre a muito secreta rodagem de "Eyes Wide Shut", o livro "Eyes Wide Open" apresenta ainda Kubrick como um "ogre desleixado", de barba por aparar e jeans. Por outro lado, Raphael confirma-o como um erudito de curiosidade infinita, com quem discutia literatura e história clássica. E se o livro desagradou aos mais próximos do realizador, há também quem o considere imprescindível para ficar a conhecer os métodos de Kubrick ou quem veja nele um exercício de narcisimo de Frederic Raphael.O filme, que Kubrick deixou praticamente pronto, estreia nos Estados Unidos na próxima sexta-feira e não tem ainda data prevista para a sua exibição em Portugal. De qualquer modo, com ou sem a polémica criada pelo livro de Raphael, "Eyes Wide Shut" dificilmente escapará à controvérsia e ao escândalo. A própria Nicole Kidman reconheceu que, depois de ter visto o filme - em Março, poucos dias antes da morte de Kubrick -, começou por ficar em estado de choque. "Depois ficámos orgulhosos por ter feito este filme, embora certos de que vai ser muito controverso", disse a actriz à revista "Time", cujo último número traz, na capa, o casal Cruise nu.Descrito como uma interpretação freudiana do amor e do ciúme, "Eyes Wide Shut" demorou cerca de um ano e meio a ser rodado em Inglaterra, tendo obrigado Tom Cruise, Nicole Kidman e Stanley Kubrick a cimentar uma relação de grande confiança e intimidade. A cena inicial do filme - já amplamente divulgada em todo o mundo -, na qual o casal Hardford aparece nu, foi filmada pelo próprio realizador, com o "set" fechado, de modo a aumentar o clima de intimidade. Os boatos postos a circular foram muitos, relatando cenas de sexo e nudez, bem como passagens orgíacas. E a Warner chegou a temer que o filme fosse classificado como pornográfico, tendo Kubrick acedido em fazer alguns cortes cirúrgicos, pelo menos na versão que será vista nos Estados Unidos.A mulher do realizador, Christiane Kubrick, refuta, também em declarações à "Time", que "Eyes Wide Shut" seja um filme sobre sexo, preferindo vê-lo como um documento sobre o medo e sobre o modo como o ciúme pode despertar o lado negro que existe em cada pessoa. Trata-se, segundo Nicole Kidman, de uma relação obsessiva e doentia, cuja moralidade ficará ao critério daqueles que assistirem ao filme. Ainda assim, Enya, uma das filhas do realizador, vê neste "Eyes Wide Shut" uma espécie de sentença moral do seu pai, segundo a qual todos temos em nós o bem e o mal, podendo este ser despertado a qualquer momento.Certo é que o filme recorre à exploração da nudez do casal Cruise/Hardford para transmitir as emoções que Kubrick imaginou. E que, voluntariamente ou não, este "Eyes Wide Shut" é já visto como uma espécie de "Último Tango em Paris" de final de século, facto que deixa em Nicole Kidman algumas dúvidas relativamente ao tipo de êxito que o espera.