A vitória de Jesus Gil y Gil
O enclave no Norte de África é uma mancha na autoridade "inter muros" de Joaquin Almunia, o mais que provável rival de Aznar à presidência do governo espanhol. A Espanha política, por via de um empresário, alcaide e presidente de um clube de futebol, é confrontada com um caso de populismo e de ética.
Desobedecendo às directrizes, os dois eleitos do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) juntaram os seus votos ao Grupo Independente Liberal (GIL) de Jesus Gil y Gil e permitiram a eleição, no sábado, de Mustafá Aberchán, como primeiro presidente muçulmano de Melilla. As ordens da capital espanhola para os socialistas eram inequívocas: proibição de votar com o GIL e apoio aos conservadores do Partido Popular (PP). Joaquin Almunia, o secretário-geral e o mais que provável candidato do PSOE à presidência do governo de Espanha nas eleições de Março, teve ontem de dedicar a Melilla parte de uma conferência de imprensa. Foi esta a vitória de Gil y Gil, empresário imobiliário, presidente do Atlético de Madrid, alcaide de Marbella e acusado pela Procuradoria Anticorrupção de relações com a mafia italiana."Espero que Gil não tenha tido tempo de sacar o livro de cheques". Foi assim, sem qualquer subtileza, que o secretário-geral dos socialistas comentou, ontem, o sentido de voto de dois dos seus: Ramón Dobaños e Malika Mohamed. Uma frase de amarga sinceridade: na madrugada de sábado, horas antes da eleição do presidente da cidade de Melilla - que tem um estatuto mais amplo que as urbes situadas em território peninsular -, Dobaños e Mohamed garantiram que iam cumprir as directrizes de Madrid. Que votariam com o PP para travar o passo ao GIL. A desconfiança implícita nas palavras de Almunia é, ainda, vitória de Gil."Se gostam de Melilla dirão que metam o cartão [socialista] por onde lhes caiba", respondeu, no seu peculiar estilo, Jesus Gil y Gil, animando os dois socialistas melillenses à dissidência: "Podem passar para outro grupo". Se assim fosse, a aritmética eleitoral não era tocada e o acordado entre o PSOE e o PP passaria à história. "Mustafá Aberchán [o presidente eleito com o apoio socialista e do GIL] tem por função cumprir e fazer cumprir a lei, independentemente do que pense de Deus, de qual seja a sua origem ou etnia", declarou, ontem, o presidente da Associação de Direitos Humanos de Melilla. Para José Alonso, é patente uma atitude racista dos socialistas e conservadores, num enclave no qual a maioria da população é muçulmana. Também neste campo, Gil y Gil ganha em toda a linha com argumentos de outros.Para os socialistas, o "caso Melilla" não é, apenas, um episódio de desobediência partidária, susceptível de sanção pelas regras internas. Tal castigo pode, ou não, ter efeitos: nada depende do PSOE mas, apenas, da decisão dos seus dois eleitos. Mas os efeitos podem ser devastadores quando o secretário-geral, Joaquin Almunia, afirmou ontem a sua predisposição em ser adversário do actual presidente do executivo de Espanha, José Maria Aznar, nas eleições do próximo ano. Melilla já é, no historial de Almunia como líder partidário, uma mancha na sua autoridade. E, quando esta é posta em causa entre os seus é argumento, demolidor, para os contrários."Não aceito [de Ramón Jauregui, responsável de política autonómica do PSOE] lições de democracia, ele que vem do mundo "abertzale" com ligações à ETA", continuou Gil y Gil. O presidente do GIL subiu deliberadamente a fasquia. Escreve cartas a políticos, como ao socialista Jauregui e, ontem, em prolixas declarações acusou o governo espanhol e o PP de o quererem eliminar politicamente. Pelo que afirma que o seu GIL, que já governa nas localidades de Marbella, La Línea de la Concepción e Casares, na turística Costa do Sol, vai concorrer às eleições para o governo andaluz, e que ele próprio será candidato às gerais de Março de 2000. Pela avalanche de declarações e revelações, Gil volta a ganhar.Tamanha actividade é uma corrida contra o tempo: se fosse eleito deputado, Jesus Gil y Gil atrasaria as investigações sobre as suas actividades. Ontem, no mesmo dia, em que revelava o contéudo de cartas e se multiplicava em declarações, as 18 mil páginas do processo instruído em Marbella pelo juiz Santiago Torres foram transferidas para a Audiência de Málaga. Naquela documentação, repartida por 35 volumes, o magistrado acusa o alcaide de Marbella de ter desviado mais de 550 mil contos para o Atlético de Madrid sob a forma de patrocínio. Uma acusação que já levou Gil à prisão, de onde saíu após o pagamento de uma fiança de 120 mil contos. Mais: o relatório da "Procuradoria Especial para a Repressão dos Delitos Económicos relacionados com a Corrupção", um documento de 26 páginas que acusa "Don Jesus" de ligações com mafiosos que lavam dinheiro em Marbella, é corroborado por outras investigações. Escutas telefónicas realizadas, entre 1991 e 1993, pelo Serviço Central de Estupefacientes da polícia de Espanha, autorizadas pelo juiz Baltasar Gárzon a pedido de magistrados italianos, revelam que Gil mantinha contactos com Felice Cultrera e Gianni Mennino, investigados pelas autoridades de Roma por envolvimento com o clã de Santapaola. Segundo adiantou o diário "El País", as conversas incidiam sobre negócios e investimentos e utilizavam números de telefones de sociedades criadas por familiares da juiza decana de Marbella, Pilar Ramirez. A actividade profissional desta magistrada, denunciada pela Procuradoria Anticorrupção, já está a ser analisada por inspectores do Conselho Geral do Poder Judicial, o órgão de governo da Justiça espanhola.