Vergonha "gay" nunca mais
A derrota da comunidade homossexual portuguesa quanto ao reconhecimento legal das suas uniões não esmoreceu uma luta que, embora mais ou menos recente, conquistou uma mediatização sem precedentes. Este ano, gays, lésbicas, bi e transexuais voltaram a festejar, com reivindicações, o direito a escolherem a sua orientação sexual, quando se comemoram 30 anos da revolta de Stonewall. Conquista a conquista, o movimento nunca mais parou. O PÚBLICO esteve nas celebrações de Lisboa e Porto e, através dos seus correspondentes, faz também o ponto da situação dos direitos "gay" nos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Espanha, Itália, Brasil e Rússia.
"Pelo menos já deixaram de convidar o psiquiatra e o padre para os debates". Maria Andrade, da revista lésbica "Lilás", parece algo sarcástica quando questionada sobre as conquistas que homens e mulheres homossexuais atingiram no país.Mas acaba por admitir que se perdeu "a timidez, tanto na análise das questões como nas reivindicações" feitas pelas "comunidades homossexuais", já que Maria Andrade considera que não existe "a" comunidade.Em todo o mundo, milhões de lésbicas, gays e seus amigos e familiares têm tomado parte nas comemorações dos 30 anos da revolta de Stonewall - que teve este fim-de-semana o seu momento alto em milhares de cidades, com paradas e marchas alusivas ao 28 de Junho de 1969 - quando a polícia invadiu um bar nova-iorquino disposta a prender os clientes, quase todos gays. Para surpresa das autoridades, os homossexuais resistiram e enxotaram a polícia com copos, garrafas, pedras e lixo. A revolta - marcada ainda pela morte da actriz Judy Garland, ícone da comunidade gay, que ocorrera no dia anterior - durou três dias. Daí em diante, a data, baptizada Dia do Orgulho Gay, seria aproveitada para reivindicar direitos iguais sem escamotear as diferenças de quem tem uma orientação sexual "fora da norma".Três décadas volvidas, o que mudou para um grupo que sempre se viu excluído e discriminado?"Olhando para trás, vejo vitórias minúsculas, mas magníficas. Hoje, se dois homens andarem de mão dada em Nova Iorque, ninguém liga", sustentou, em declarações à AFP, um homem que estava no Stonewall naquela noite.Em Portugal, onde a comunidade homossexual se "escondeu" até mais tarde e onde o movimento é ainda jovem, os gays e lésbicas "estão muito conscientes da discriminação que sofrem, mas pouco conscientes dos seus direitos". Ou melhor, "da força que podem gerar para conquistar esses direitos", defende Sérgio Vitorino, do Grupo de Trabalho Homossexual (GTH) do PSR - considerando, por isso, que é papel fundamental das associações que os representam "informá-los tanto daquilo em que são discriminados, como dos direitos, com base na ideia de que, juntos, [podem] mudar as coisas".Maria Andrade também acredita que a livre divulgação de informação é basilar na luta homossexual, porque sem ela "as pessoas não podem fazer escolhas na vida". Daí o empenho para fazer uma revista em que é frequente ela e as amigas gastarem o seu próprio dinheiro.Já Gonçalo Diniz, da ILGA, elege o reconhecimento legal das uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo e toda a gama de direitos que lhe está associada como a luta mais urgente do movimento no país. A pretensão figura aliás em segundo lugar, logo após a exigência da "explicitação, na Constituição, da orientação sexual como um dos critérios pelos quais ninguém pode ser discriminado", num documento reivindicativo subscrito pela quase totalidade das associações e entidades ligadas a este universo.Outras medidas exigidas neste conjunto de 15 reivindicações dizem respeito ao direito à adopção de crianças e à inseminação artificial; à não discriminação de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais na atribuição do poder paternal, no acesso ao emprego e progressão na carreira, no acesso à saúde e na dádiva de sangue; ao "direito à educação sexual nas escolas, não limitada à questão reprodutiva, mas baseada no conhecimento do próprio corpo como fonte de prazer".As associações em causa (ILGA, GTH-PSR, Opus-Gay, Clube Safo, Abraço, Lilás e revista Korpus) querem ainda a eliminação da diferença entre a idade mínima de consentimento para relações heterossexuais, que é de 14 anos, e homossexuais, que é aos 16, bem como a possibilidade de os transexuais verem alterado o género nos seus documentos de identificação.Com este documento, à semelhança de outras iniciativas conjuntas, "o movimento homossexual mostra que, apesar das diferenças entre as associações, a luta pelos direitos humanos a todos nos une", sublinha António Serzedelo, da Opus Gay, secundado por Isidro Sousa, da revista Korpus. Até porque "a diversidade enriquece muito o movimento", sustenta Sérgio Vitorino.Mesmo se o facto de o arraial gay, que animou a noite de sábado em Lisboa, ter sido organizado exclusivamente pela ILGA se tornou num sapo que pelo menos uma das organizações, a "web-zine" Branco no Lilás, não está disposta a engolir, tendo-se recusado a participar na festa que, este ano, se mudou do Príncipe Real para a Praça do Município (ver texto nestas páginas).Para todos os efeitos, este é um dia de orgulho para os homossexuais, "não porque sejam melhores ou mais importantes do que os outros, mas por oposição ao estigma imposto pela sociedade, à vergonha que muita gente pensa que os gays e lésbicas deviam sentir da sua orientação sexual", sublinha Gonçalo Diniz.