A serra ainda é dos pastores
Há anos que se profetiza o fim da transumância, mas essa milenar forma de vida vai resistindo ao sinal dos tempos. Os pastores da Estrela ou de Montemuro continuam a levar o gado até à erva fresca das alturas para alimentarem a lucrativa produção de queijo. Com a sua errância, eles sustentam a economia rural, conservam a biodiversidade da serra e mantêm viva a imagem libertária do pastor.
Os últimos festejos dos santos populares já se adivinham e os pastores Júlio de Alcafache e Sebastião da Aldeia Formosa estão já a preparar a reunião dos rebanhos que os levará durante vários dias até aos cumes da serra do Montemuro. Há uma ou duas décadas atrás, a transumância nas serras parecia definitivamente em vias de extinção, mas os gostos dos consumidores urbanos inverteram a tendência: a crescente procura e valorização do queijo da serra e de carnes certificadas faz com que a transumância continue a ser a melhor forma de criar ovelhas e de garantir os rendimentos dos pastores. Na rotina de um hábito que se perpetua há milhares de anos, Júlio e Sebastião personificam a resistência da velha ruralidade portuguesa às exigências dos novos tempos. Eles "são a resposta da ordem local à desordem global", diz Alberto Martinho, antropólogo e docente da Universidade Católica.Na sexta-feira da semana passada, estudiosos portugueses e espanhóis da transumância reuniram-se em Viseu num colóquio subordinado a um lema - "Montemuro, a última rota da transumância" -, que se viria a mostrar errado. Não é só no Montemuro que a errância pastoril perdura; na zona da serra da Estrela as migrações sazonais continuam vivas, embora sem a dimensão de há 50 ou 100 anos, quando os rebanhos abandonavam o frio do Inverno serrano e se deslocavam até aos alvores da Primavera para os campos de Ourique, a 400 quilómetros de distância, ou para os planaltos do Alto Douro. Mas pelo menos três milhares de ovinos sobem ainda todos os anos às serras de Montemuro e da Estrela em percursos de 50 quilómetros para procurarem erva fresca nas proximidades das nascentes. Com alguma persistência, "é ainda possível encontrar vestígios de transumância completa em rebanhos que sobem à serra de Verão e deslocam-se para os campos de Idanha durante o Inverno", diz Rosa Moreira da Silva, professora de Geografia Rural na Universidade do Porto.A importância destas migrações de homens e gado pelas "canadas" serranas justifica-se em primeiro lugar pela sua rendibilidade. Depois de 1978, com a realização das primeiras feiras de queijo, os ganhos dos pastores aumentaram exponencialmente, ao ponto de na actualidade "estarem situados no vértice da pirâmide social das aldeias", diz Alberto Martinho. Em Espanha, onde a transumância ainda consegue movimentar 200 mil ovinos todos os anos e 20 a 30 mil bovinos, "é a produção de carne certificada da raça avillena negra ibérica que está a manter as deslocações", nota Pedro Martín, professor de História Moderna na Universidade de Autónoma de Madrid. Com a tradição, os proprietários de pastagens nas zonas mais altas da serra, acima dos mil metros de altitude, acabam também por lucrar com o aluguer das suas terras aos pastores transumantes. A importância desta actividade mede-se também pelo seu impacte na conservação da biodiversidade e das paisagens tradicionais da serra. Os excrementos dos rebanhos geram a única fonte de fertilização dos solos pobres da montanha e garantem a persistência da flora serrana. O mesmo efeito ambiental ocorre nas pastagens das aldeias situadas a altitudes superiores, que em muitos casos são conservadas para serem alugadas aos pastores. Ora "sem pastoreio os prados viram maninhos e dá-se a completa degradação da paisagem da montanha", afirma Rosa Moreira da Silva.A conservação destas formas de vida e de subsistência dos pastores da serra serve ainda para perpetuar uma cultura milenar. Claro que hoje a verdadeira transumância "é uma relíquia do passado" e "a imagem estilizada da literatura bucólica e pastoril do século XVI, que nos mostra os pastores como homens livres, com uma vida de certa forma associal, profundamente ligados ao ciclo da natureza já não existe", diz Pedro Martín. Mas mesmo deslocando-se "em jipes e muitas vezes acompanhados de telefones portáteis", a vida errante destes pastores continua a alimentar uma forma de ver o mundo diferente. "A sua profundidade de campo, para recorrer a uma linguagem 'fotográfica', é muito maior", afirma este especialista que estudou a transumância castelhana entre 1273 e 1836.Será que a capacidade de resistência desta forma de vida está garantida nos próximos anos? As opiniões dividem-se, mas é evidente que o ressurgimento dos últimos anos permite alimentar algumas expectativas. "Há cada vez menos pastores e eu acredito que a transumância corre riscos de desaparecer", em boa parte devido à criação de novas estradas que "tornarão o espaço rural muito mais pequeno", diz Rosa Moreira da Silva. Alberto Martinho é mais optimista e garante que "a transumância vai continuar", pelo menos enquanto o queijo da serra mantiver o seu preço actual. Pedro Martín não arrisca previsões, mas deixa no ar uma observação: "Em Espanha, os jornalistas andam há 15 anos a fazer títulos com as últimas rotas da transumância e a transumância continua viva". Ainda que não seja capaz de afastar os sinais de erosão, o velho e por vezes arcaico mundo rural ibérico ainda consegue "inventar" meios para resistir ao sinal dos tempos.