O fim do terrorismo de esquerda
Na madrugada de 19 de Junho de 1984, uma operação conjunta da PJ, PSP e GNR prende 64 suspeitos de pertencerem às FP-25 de Abril. A Operação Orion, desencadeada a nível nacional, culminou um ano e meio de investigação policial. Foi o princípio do fim das FP-25, que, desde Maio de 1980, fez centenas de assaltos a bancos, praticou 18 crimes de sangue e estava a preparar uma série de raptos. Tudo em nome do "Projecto Global".
Princípio de Junho de 1984. Cândida Almeida, procuradora no Tribunal de Instrução Criminal (TIC), em Lisboa, é convocada para uma reunião urgente na Procuradoria-Geral da República. Marques Vidal, então vice-procurador-geral (Cunha Rodrigues só ocuparia o cargo cerca de dois meses depois), chamara também Dias Borges, na época responsável pela Direcção Central de Combate ao Banditismo (DCCB), e Dias Bravo, procurador distrital de Lisboa. Cândida Almeida é informada, sem mais pormenores, que irá receber "um processo de terrorismo" que envolve "gente importante." "Lá vai a direita...", pensou de imediato a magistrada, com ideia nos atentados bombistas do ELP (Exército de Libertação de Portugal). O processo é-lhe entregue em mãos por um elemento da PJ, no TIC, que funcionava no 4º andar do edifício da Judiciária, na Rua Gomes Freire. Cândida Almeida prepara-se para ler centenas de páginas e analisar se existem indícios suficientes para prender os suspeitos. Fica "estupefacta" quando percebe do que se trata. Há demasiados e "fortíssimos" indícios do comprometimento dos elementos referidos no processo com uma organização terrorista: as FP-25. Entre os nomes da sua estrutura dirigente ressalta um que deixa a procuradora de respiração cortada: Otelo Saraiva de Carvalho. "Senti uma grande desilusão", recorda a magistrada. "Este homem é o 25 de Abril", espantou-se. Passou 55 mandados de captura - mais tarde, haveria de passar mais nove -, mandou apreender automóveis e ordenou buscas às sedes da FUP (Frente de Unidade Popular), a organização política que as investigações tinham apontado como sendo o braço legal das FP-25. Promoveu ainda buscas domiciliárias e escutas telefónicas.Cândida Almeida deteve-se perante os cinco elementos referenciados como dirigentes da organização: além de Otelo, Pedro Goulart, Mouta Liz, Humberto Dinis Machado e Vítor Guinote (que nunca chegou a ser pronunciado por falta de provas). Queria certezas absolutas sobre a sua implicação e foi esse o motivo pelo qual não os mandou prender na mesma altura - explica. Ao raiar do sol do dia 19 de Junho, é desencadeada a operação Orion, em que participam mais de 300 elementos das três forças policiais. Acabam, entretanto, as poucas dúvidas que ainda existiam sobre a implicação de Otelo, que é preso na manhã seguinte, dia 20. "Quando ele entrou, senti uma tristeza interior muito grande", conta Cândida Almeida. Mas a justiça "tinha de ser feita". "Aparentemente estava muito calmo. Acho que ele pensava que ia voltar para casa", recorda a magistrada. O processo é distribuído por sorteio ao juiz de instrução criminal, Martinho de Almeida Cruz, que passa a presidir a todas as diligências do Ministério Público. Foi a primeira vez, em Portugal, que se fez a acusação de um crime de associação terrorista.Passados 15 anos, Martinho de Almeida Cruz resume o que pensa da organização que ajudou a desmantelar: "As FP-25 eram uma cambada de 'lumpen', comandada por uma cambada de intelectuais de esquerda e tendo Otelo como porta-bandeira." Quanto a este, recorda-o como "um homem amável e ingénuo, que aderiu a um projecto da esquerda não alinhada, o chamado Projecto Global, partindo do princípio que se estava num estado pré-revolucionário". "Quando perguntava a Otelo o que achava de A, B ou C, a resposta era sempre 'uma jóia de rapaz'. Depois, se o confrontava com o registo criminal das criaturas, ele dizia sempre: 'Não pode ser, não acredito'. Mas tive com ele uma boa relação pessoal e até uma certa empatia. É claro que ele sabia tudo, rigorosamente tudo, e dava o seu aval", afirma o magistrado.A vida de Martinho de Almeida Cruz modificou-se radicalmente a partir do momento em que recebeu o processo das FP-25. Passou a andar protegido 24 horas por dia, e sublinha: "Se não fosse isso, teria morrido". Ele foi uma das três pessoas que as FP-25 condenaram à morte. As outras duas, o "arrependido" José Manuel Barradas, que ajudou a desmantelar a organização, e o antigo director dos Serviços Prisionais, Gaspar Castelo-Branco, foram assassinados em 1985, o primeiro poucos dias antes de começar o julgamento, em Setembro de 1985, e o segundo alguns meses depois.Por razões de segurança, Almeida Cruz é destacado em 1986 para a Reper (Representação Permanente de Portugal na Comunidade Europeia), em Bruxelas, e aí permaneceu até Setembro de 1998. Regressa a Lisboa, ao Tribunal da Relação, onde actualmente é juiz. "Não queria voltar e ninguém me perguntou, ao fim de 15 anos em Bruxelas, o que é que eu pensava. Fui informado de que iria ser substituído na Reper e de que havia pareceres da PJ e do SIS de que não havia riscos para mim em Portugal. Voltei em Setembro e em Novembro levei uma enorme tareia à porta de casa. Sofri uma depressão e ainda estou a tentar curar-me. O processo das FP-25 destruiu algumas pessoas e eu estou incluído nesse grupo", declarou ao PÚBLICO.Mais tranquilo mostra-se outro juiz com grandes responsabilidades no processo, Adelino Salvado, que presidiu ao colectivo que julgou os 64 réus do primeiro processo das FP-25. A primeira vez que o magistrado tomou contacto com o processo - 300 volumes com cerca de 50 mil páginas - foi em Janeiro de 1985. O julgamento começou em Outubro desse ano e o acórdão final foi publicado em Junho de 1987. Actualmente também juiz no Tribunal da Relação, Adelino Salvado refere o "enorme desgaste" que o processo representou para ele e para a sua família: "Não foi um período feliz, saudável e seguro, antes se pode dizer que foi, até agora, o pior período da minha vida pessoal, muito embora, do ponto de vista profissional, tenha sido um desafio muitíssimo interessante".Adelino Salvado, que, à semelhança de Almeida Cruz, foi destacado para o estrangeiro, por razões de segurança - esteve nas Nações Unidas, em Nova Iorque, entre 1987 e 1991 -, lamenta uma coisa: que "os crimes dolosos de extrema gravidade, nomeadamente homicídios", ainda não tenham sido julgados e estejam "a caminho da prescrição".