A cultura dos chimpanzés
Os chimpanzés da Guiné e da Costa do Marfim usam uma espécie de martelos e bigornas para partir nozes. Mas há congéneres seus na Tânzania que não sabem o que isso é. Populações de chimpanzés que vivem afastadas exibem práticas tão distintas que um artigo científico conclui que estes primatas as transmitem culturalmente - como faz o homem. Afinal, o homem pode não ser a única espécie com cultura.
Alguns chimpanzés usam instrumentos ou gesticulam de uma maneira que outros, a poucos quilómetros de distância, ignoram completamente. Existe, por isso, uma verdadeira cultura dos chimpanzés, transmitida de geração em geração, que um artigo científico descreve na última edição da revista "Nature".O artigo representa uma síntese de um total de 151 anos de observações directas do comportamento dos chimpanzés "Pan troglodytes" em sete locais de África. O estudo mais curto aqui incluído foi feito ao longo de 8 anos, enquanto o mais longo se estendeu por 38. O artigo faz uma súmula dos conhecimentos adquiridos na última metade deste século sobre o comportamento dos chimpanzés, que é assinada por Andrew Whiten, da Universidade de St Andrews na Escócia, e por outros oito primatólogos de vários países - entre os quais a famosa investigadora norte-americana Jane Goodall, do Centro de Investigação no Rio Gombe, na Tânzania.Os dados mostram uma "variação cultural significativa" nas práticas das diferentes populações de chimpanzés da África equatorial, sendo que muitas dessas variações não podem atribuir-se a diferenças ecológicas ou geográficas. Daí que a variação cultural seja a única explicação que os cientistas encontram para comportamentos como determinadas maneiras de capturar formigas e abelhas, quebrar nozes, fazer a corte ou ameaçar os seus rivais. Tudo isto parece transmitir-se culturalmente, pois populações que vivem em locais afastados apresentam diferenças notáveis nessas práticas - tal como acontece nas sociedades humanas. "Talvez não sejamos tão diferentes como pensávamos", declarou Andrew Whiten à agência Reuters. "Afinal, pode ser que o homem não seja o único animal cultural. Sabemos desde há algum tempo que os animais têm tradições, mas a escala e a complexidade do que descobrimos aproxima os chimpanzés de nós. Reforça a continuidade entre nós e o resto da natureza. Observámos uma variedade de comportamentos diferentes nas várias populações de chimpanzés, muito semelhantes ao que estamos habituados a ver no homem."Os chimpanzés de África ocidental (de Bossou, na Guiné, e da floresta de Taï, na Costa do Marfim) utilizam "martelos" e "bigornas" de pedra e madeira para partir nozes, mas esta técnica é desconhecida dos seus congéneres de África oriental, como é o caso dos da reserva tanzaniana de Gombe. Já é possível, no entanto, que os chimpanzés dos montes Mahale e de outros dois locais no Uganda (Kibale e Budongo) usem aquelas ferramentas, mas são necessárias mais observações para confirmar esta hipótese.Os membros de um grupo de chimpanzés de Mahale servem-se da nervura central retirada de uma folha para apanhar térmitas - uma prática que outros, incluindo uma comunidade vizinha, ignoram. E unicamente os chimpanzés de Bossou põem uma cunha por baixo das bigornas para as equilibrar. Em contrapartida, esta mesma população desconhece um costume praticado por outras - uma espécie de "dança da chuva", caracterizada por uma grande agitação, com que reagem ao início de uma chuvada tropical.Até ao momento, os primatólogos registaram 65 tipos diferentes de comportamentos. Nem todos, porém, resultaram de uma transmissão cultural: 26 atribuem-se a factores ecológicos e ambientais. Por exemplo, os chimpanzés que vivem em áreas onde costumam aparecer leões e leopardos dormem em cima das árvores e não no chão. Mas os restantes 39 tipos de comportamentos são, de facto, considerados culturais. "Não conhecemos nenhuma variação que se compare a esta noutras espécies não humanas, embora não tenha ainda sido feito nenhum estudo sistemático deste género", afirma a equipa.As aves canoras, no que diz respeito a dialectos locais do canto, são um exemplo de diferenças de comportamento relacionadas com a cultura. Mas, explicam os autores do artigo, essas variações são isoladas e limitam-se a uma ou duas características, ao passo que nos chimpanzés se identificaram as tais 39. "As extensas e múltiplas variações agora documentadas nos chimpanzés não têm, portanto, paralelo."Tradicionalmente, o termo cultura reserva-se para as civilizações humanas, significando o desenvolvimento de conhecimentos sociais e intelectuais adquiridos essencialmente através de trocas linguísticas. Os autores do artigo da Nature deixam no ar uma interrogação: haverá outros animais que apresentem uma variação de comportamento tão rica como os chimpanzés? "Fica por demonstrar se os chimpanzés serão únicos neste aspecto", escrevem os investigadores, "ou se outras espécies animais, depois de estudadas da mesma maneira, não revelarão padrões semelhantes."Seja como for, o artigo ontem publicado reforça não só o que o que o senso comum já dizia, como o que a biologia já tinha demonstrado ao constatar a semelhança genética entre homens e chimpanzés: os dois são primos cada vez mais próximos.