No jardim de Sophia
Basta dizermos: Sophia. E todos sabemos de quem falamos. Conhecemo-la desde pequenos. Nenhum dos anteriores prémios Camões habita em nós como Sophia de Mello Breyner Andresen. "Há nomes predestinados", escreveu um dia Eduardo Lourenço a propósito dela. Sentemo-nos no seu jardim, antes dela voltar a partir para uma ilha.
Senta-se na varanda, à luz poente, de costas para o Tejo, no topo do seu jardim de melros, videiras e ciprestes. Com a chávena de chá pousada ao lado de um texto sobre José Régio ("apanhou chuva, foi no Inverno, mas com o bom tempo secou"), o longo, fino, branco Cartier aceso entre os dedos. "Vou jantar com a minha família", diz. Acrescenta, ao de leve: "... mas não sei se ela sabe!". "Porém obstinada eu invoco - ó dividido - / O instante que te unisse / E celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste" Nem 24 horas passaram ainda desde que Maria Velho da Costa apareceu a bater à porta do primeiro andar da Travessa das Mónicas anunciando o prémio: "O prémio, Maria? Qual prémio?", lembra-se Sophia de ter perguntado. "O Camões!", respondera a romancista.Às dez da noite da véspera, quinta-feira, tendo recebido uma mensagem a partir de Salvador da Baía - onde o júri da 11ª edição do Prémio Camões se reuniu para "em cinco minutos" (segundo sintetizou ao PÚBLICO a brasileira Leila Moisés, um dos membros do júri) acordar, unânime, a escolha de Sophia - Maria Velho da Costa começara a tentar contactar a vencedora. O telefone estava, por acaso, mal pousado. "À meia noite", recorda, "decidi ir à Graça. A Sophia estava sozinha em casa e ficou muito espantada, um bocadinho perplexa... quando lhe explico que o prémio é o Camões, o mais importante da cultura de língua portuguesa, só me diz: 'Mas agora?'!"Num levíssimo sorriso, Sophia confirma a perplexidade que sentira de madrugada: "Pensar muito em prémios é um mau pensamento". Faz uma pausa. Fuma. "A Maria estava tão emocionada... o que a mim me tocou foi essa unanimidade..." E abre muito os olhos azuis, interrogativa. Um dos presentes, Zeferino Coelho, da Caminho, seu editor, diz: "Mas a Sophia não tem contestação". Pausa. E ela: "Não tenho contestação?... Estou sempre em casa... Sou como os relógios de cuco, só saio quando há sol.""Estes são os arquipélagos que derivam ao longo do teu rosto / Estes são os rápidos golfinhos da tua alegria / Que os deuses não te deram nem quiseste"Com Maria Velho da Costa - que foi mediando o "boom" dos telefonemas pós-anúncio do prémio (21h na Baía, meia noite em Lisboa), apresentando-se como "secretária" de Sophia! - celebrara, conversando até às duas da manhã, com cerejas e vinho branco. O champanhe - "champanhe? Sim, claro que tenho champanhe." - será só para daqui a pouco, quando "os meninos" (os filhos, todos) chegarem: "Uma mesa para muita gente! Hoje somos muitos", pede, alegre, atenta aos preparativos do jantar. Naturalmente, ela que, agora, volta a escrever com a Primavera - "No Inverno fico mais doente, não vou a tempo de apanhar os poemas" - passou o dia sem pegar na caneta e no pequeno caderno de capa azul e folhas cor de pérola onde estão os seus mais recentes poemas, manuscritos e emendados com a cor que calha. "Eu para escrever preciso de paz, silêncio e liberdade... faltando estas coisas não se pode escrever". Ontem faltavam, mas Sophia estava alegre, neste inesperado intervalo do que anda a escrever. E o que anda a escrever tem três - aliás, dois, porque o livro de contos (ainda sem título), que sairá no Outono, já está pronto - registos distintos: uma peça de teatro, a que regressou recentemente, e um livro de poesia, que se vai fazendo. "Só publico os poemas quando começo a achar que os vou perder". Di-lo assim, como uma evidência. Como o que vindo dela nos habituámos a ler. A escutar. É uma evidência sem metáfora: "Perco muitos livros" (Sophia chama "livros" aos cadernos). Aponta para o caderno de notas do PÚBLICO e espanta-se: "Não perde os seus livros?"."Este é o país onde a carne das estátuas como choupos estremece / Atravessada pelo respirar leve da luz"Sentada no seu jardim, lenta como é lenta a luz atlântica a desaparecer do dia, Sophia fala agora da Grécia, porque é à Grécia que em breve voltará mais uma vez ("antes do Verão, oh, sim, e já vamos atrasados!") a Grécia "real e mítica" das múltiplas ilhas do sul do Egeu, as Ciclades que deram nome ao poema de que aqui ecoam fragmentos - "o mais profundo retrato de Pessoa que alguma vez foi tentado", em que "cada estrofe é como uma estátua solitária e silenciosa que espera da seguinte a palavra do enigma e lha devolve", em que Sophia resumiu "o seu destino de Penélope, a si mesma fiel, tecedora do mais alto dia e da mais viva esperança no meio da noite, nossa e da vida.", segundo escreveu Eduardo Lourenço num belíssimo texto, em 1978 ("Para um retrato de Sophia", prefácio à "Antologia" da Moraes)."Escrevi-o num barco", recorda Sophia, com o cigarro esquecido entre os dedos, "no tempo em que havia viagens longas... estava obcecada por Pessoa. Mas entre Camões e Pessoa, termino em Camões". Agora, que as viagens já não correm lentas, haverá ainda uma etapa ateniense para repetir: "Na colina em frente à Acrópole, há um restaurante onde à noite vejo o Partenon à mesma altura que eu".Aqui brilha o azul-respiração das coisas / Nas praias onde há um espelho voltado para o mar // Aqui o enigma que me interroga desde sempre / É mais nu e veemente e por isso te invoco"Deixemo-la de partida para a claridade das ilhas, sentada no jardim, à espera dos filhos, os que em pequeninos ouviram contar as histórias que ela haveria de nos contar a todos, "as meninas do mar" e "os cavaleiros da Dinamarca" e "as florestas" que entraram pela infância de todos nós, os que mais tarde a seguiram, na poesia, e também os outros, que nas histórias e nos contos ficaram.Não há nenhum poeta em Portugal de quem todos possamos dizer assim o nome próprio, Sophia ("sabedoria mais funda do que o simples 'saber'", E. Lourenço), e sabermos, todos, de quem estamos a falar. Depois de Miguel Torga (Portugal), João Cabral de Mello Neto (Brasil), José Craveirinha (Moçambique), Vergílio Ferreira (Portugal), Rachel de Queiroz (Brasil), Jorge Amado (Brasil), José Saramago (Portugal), Eduardo Lourenço (Portugal), Pepetela (Angola), António Cândido (Brasil), Sophia de Mello Breyner Andresen é a primeira portuguesa a ganhar o Prémio Camões - o galardão no valor de dez mil contos que visa "distinguir anualmente um escritor que tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua portuguesa".O nome de Sophia foi apresentado pela parte portuguesa e imediatamente aceite pela parte brasileira, na reunião do júri, que decorreu ao fim da manhã de anteontem, em Salvador da Baía, num hotel "debruçado sobre as ondas, ambiente muito apropriado à escolha feita", segundo Leila Moisés relatou ao PÚBLICO.Esta edição foi a última em que o júri - presidido por António Alçada Baptista e constituído por Maria Alzira Seixo, Maria Irene Ramalho dos Santos (pela parte portuguesa), Leila Moisés, Luís Costa Lima e Elmer Barbosa (pela parte brasileira) - foi apenas luso-brasileiro. A intenção, em 2000, é alargar a composição a membros dos países africanos de expressão portuguesa.