É possível falar sobre a dor?
A exposição de fotografia "Um Cálice de Dor", comissariada por Mário Caeiro, e que pode ser vista até sábado no Arquivo Fotográfico Municipal, em Lisboa, tem subjacente um propósito de reflexão sobre a dor, enquanto realidade humana relativamente impensada. Por essa razão, a exposição foi acompanhada de um conjunto de conferências e debate no Instituto Franco-Português, um dos apoiantes deste projecto. Mário Caeiro foi igualmente o comissário da exposição "Os olhos da alma", que em 1995 esteve patente na loja do Bairro Alto "Papel e Companhia".Oito fotógrafos integram a exposição: Steve Cox, Luisa Costa Dias, Susana Paiva, Pedro Ruivo, Luís Silva, Fabrice Picard, José Luís Neto e António Júlio Duarte. Um catálogo acompanha-a, reproduzindo todas as fotografias e integrando também textos de autores de áreas muito diferentes, desde a antropologia à medicina, à política ou à psicanálise.O tema é, à partida, um desafio, difícil e interessante. Sendo a dor um facto de ordem extremamente subjectiva, e, consequentemente, dificilmente partilhável, acaba por ser, na cultura ocidental - uma cultura que se centra na megalomania e no evitar do confronto com a morte do indivíduo - uma dimensão da vida colocada compulsivamente fora da consciência. Quando se imagina um projecto de fotografia sobre este tema, surgem desde logo algumas desconfianças, uma vez que a aparente objectividade da fotografia pode conduzir a trabalhos meramente ilustrativos. No entanto, essa desconfiança foi contrariada pelos autores que integram a exposição, embora de forma desigual. A vertente mais ilustrativa, embora concebida de forma a (aparentemente) atenuar esse efeito é sustentada por Luísa Costa Dias e Luís Silva (fotografias de lápides de cemitérios). As fotografias de Pedro Ruivo, trabalhadas em sépia e propondo-se sugerir mais do representar, mostram-nos uma mão, uma cabeça voltada de costas, um tronco rasgado, instaladas em caixas negras e visíveis através de um orifício, suporte que surge como um efeito que remete para o carácter interno da dor. Steve Cox fotografa lutas de boxe, aludindo à dor exercida num contexto simbólico. As fotografias são interessantes e sendo interessante a ideia de as expor em rolos de treino de boxe, a sua visibilidade fica no entanto colocada em segundo plano por este tipo de suporte. O trabalho de Susana Paiva, um conjunto de fotografias de velhos, claramente numa fase terminal da sua vida, conseguem, apesar de poder, à partida, ser um dos conteúdos mais óbvios, revelar uma força intrínseca inegável, e convocar a reflexão sobre essa fase da vida. Ainda no piso inferior do Arquivo podemos ver o trabalho de Fabrice Picard (de que publicamos uma imagem), que fotografa, pura e simplesmente, arame farpado, remetendo de imediato para a ideia de prisão ou de campo de concentração. Os movimentos e forma do arame são suficientemente sugestivos, convocando de forma indirecta mas eficaz o sofrimento proveniente das relações humanas.No piso superior, encontramos os trabalhos de José Luis Neto/Claudia Fischer e António Júlio Duarte. Evitando completamente a realidade exterior, José Luís Neto e Claudia Fisher conceberam dez placas de vidro onde trabalharam, em registo experimental, as tonalidades das próprias emulsões a cores, submetendo-as ao contacto com fluidos corporais e matérias agressivas: urina, sangue, fogo, bala e lixa. O resultado são composições coloridas de grande sensibilidade e intimismo e que aludem, de forma abstracta mas eficaz, à proximidade entre o corpo humano e a dor (e também a morte).Finalmente, o trabalho igualmente intimista e original de António Júlio Duarte, que projecta cerca de uma dúzia de diapositivos, a preto e branco e em geral sob a forma de negativo, de bebés na incubadora, cobertos de sondas, agulhas e outros materiais médicos. Os diapositivos estão projectados a uma distância de meio metro da parede, acentuando o recolhimento do trabalho e sublinhando a dificuldade de um discurso visual ou não verbal sobre o tema. Para além disso, as imagens de António Júlio Duarte enunciam uma tese fundamental neste tema: todo o pensamento sobre a dor é da ordem do pré-verbal, e não será, pois, casual a escolha dos personagens deste trabalho. UM CÁLICE DE DORCOLECTIVA DE FOTOGRAFIALISBOA. Arquivo Fotográfico Municipal. Hoje e amanhã, das 10h às 18h30, sáb., das 10h30 às 19h.