O homem que marcou o hóquei
António Livramento foi o melhor jogador do mundo na altura em que o hóquei em patins era um desporto de referência para os portugueses. Mas foi muito mais do que um hoquista de eleição. Empurrado por uma sede de vitórias e uma ambição desportiva notáveis, o alentejano de São Manços tornou-se um treinador de sucesso e uma referência na história da modalidade. Morreu aos 55 anos e vai a enterrar hoje, de manhã, no cemitério de Benfica, rodeado de amigos, admiradores e elogios.
António Livramento faleceu anteontem à noite no Hospital de S. José, em Lisboa, e deixou o mundo do desporto português em estado de choque. "Foi não só melhor jogador português de todos os tempos, mas também o homem que marcou a história do hóquei em patins em Portugal", como o definiu ontem Júlio Rendeiro, seu antigo companheiro de equipa, no Sporting e na selecção nacional, num programa da TSF.Livramento respirava e vivia hóquei em patins desde que se levantava e quem o viu dentro do rinque tem de procurar no dicionário todos os adjectivos para o qualificar: rápido, tecnicista, inteligente, profissional... Como treinador, transmitiu a vontade de vencer aos seus jogadores e disso beneficiaram o Sporting, a selecção nacional e o FC Porto, que há oito anos não via um título de campeão nacional nas vitrinas das Antas. Desapareceu a maior figura do hóquei em patins nacional e, certamente, um dos grandes vultos da modalidade a nível mundial. Como disse o presidente portista, Pinto da Costa, "resta a consolação de ter morrido campeão".A vida de António José Parreira do Livramento foi isso mesmo: uma colecção de triunfos que começou bem cedo. Nascido a 28 de Fevereiro de 1944, em São Manços (Évora), mudou-se para Lisboa com apenas três anos de idade, tendo-se iniciado no Futebol Benfica pelas mãos do treinador Torcato Ferreira, outro nome grande da modalidade. Aos 15 anos foi para o Benfica e, a partir daí, coleccionou títulos: primeiro nos juniores e depois sete vezes nos seniores. A passagem pelos italianos do HC Monza foi o desfecho lógico para quem tinha tanta qualidade. Em 1973, voltou ao Benfica, jogando depois na equipa do Banco Pinto e Sotto Mayor.As portas de Alvalade abriram-se finalmente e Livramento podia então jogar no seu clube do coração. Foi aí que, juntamente com Ramalhete, Rendeiro, Sobrinho e Xana, formou o quinteto maravilha do Sporting e concretizou o sonho leonino de ganhar a Taça dos Campeões Europeus (1977), na primeira vez que uma equipa portuguesa conseguiu essa proeza. Após nova incursão em Itália, terminou a carreira no Sporting três anos mais tarde.Ao serviço da selecção, António Livramento venceu o Europeu de juniores em 1960, foi três vezes campeão mundial (1962, 68 e 74), sete vezes campeão europeu (1961, 63, 65, 67, 73, 75 e 77), tendo somado 209 jogos e 425 golos. Um "palmarés" invejável.Nem sempre um bom jogador dá um bom treinador, mas, como fora-de-série que era, Livramento mal pegou na selecção venceu o Mundial 82, dando continuidade aos triunfos no Sporting nos dois anos seguintes (campeonato e Taça CERS). Depois, foi um sem parar de coleccionar títulos, num total de três europeus (1987, 92 e 94), dando ainda a Portugal o último Campeonato do Mundo, em 1993, em Itália.A sua ligação com o FC Porto só no final da época passada foi concretizada, mas o namoro dos dirigentes portistas já vinha de longe, dos seus tempos de jogador. Em 1978, Livramento foi convidado a vestir a camisola azul e branca, mas o facto de ser funcionário de um banco impediu-o de rumar a Norte, num processo que deixou marcas - a partir daí, cada jogo nas Antas era uma colecção de insultos da parte dos adeptos portistas, que mal sabiam em que clube ia ele terminar os seus dias. Já como técnico, Ilídio Pinto, responsável pelo hóquei nas Antas, tentou contratar Livramento, mas o impedimento repetiu-se e só há cerca de um ano é que Vítor Hugo, então o treinador, se lembrou de o aconselhar aos dirigentes do clube."Era um líder por natureza, um predestinado, tinha um humor fantástico e lutava até ao fim sempre que acreditava em alguma coisa", diz Vítor Hugo, que se lembra de uma vez ter jogado contra Livramento, em Espinho. "Eu pela Académica, ele pelo Sporting. Marcámos dois golos cada um e o jogo terminou empatado a quatro." O ex-treinador do FC Porto recorda ainda que, quando rumou para Itália, foi Livramento quem redigiu o seu contrato. "Era empenhado e estudioso, percebia de hóquei como poucos e tinha aquela irreverência e empenho próprios dos grandes campeões."Esta época, o sonho dos dirigentes do FC Porto concretizou-se e Livramento pegou numa equipa cheia de talentos, mas que não ganhava o campeonato há oito anos. Depois de um período algo agitado, Livramento tranquilizou os jogadores e ajudou a levar para as Antas o título de campeão, a Taça de Portugal e a presença numa polémica final da Liga dos Campeões, em que o FC Porto também teve de lutar contra os árbitros.Na memória, fica bem marcada a imagem de António Livramento, no final do FC Porto-Barcelinhos, que consagrou os "dragões" como novos detentores do título: visivelmente emocionado, enumerou todos quantos o tinham ajudado a ser campeão e não segurou umas lágrimas de alegria.Como grande líder que era, o seu prestígio depressa se consolidou pelo mundo fora e ontem mesmo Juan Antonio Samaranch, presidente do Comité Olímpico Internacional, enviou uma carta de condolências à família de Livramento, como o fizeram também o primeiro-ministro António Guterres e o secretário de Estado do Desporto, Miranda Calha. E, mesmo antes de o dirigente federativo Fernando Claro apresentar a proposta da mudança de nome da Supertaça nacional para Supertaça António Livramento, a Oliveirense decidiu instituir um troféu com o nome do treinador, como prémio para o melhor jogador de uma prova que o clube organiza anualmente na apresentação da sua equipa. Além disso, a Oliveirense sugere ainda a criação do Torneio António Livramento, que deve reunir as melhores selecções do mundo.Será uma boa oportunidade de concretizar aquilo que Vítor Hugo disse ontem ao PÚBLICO: "Chego a pensar que ele era mais conhecido do que o hóquei em patins."