Puschkin e Camões

Amanhã, toda a Rússia assinala o dia do 200º aniversário do nascimento de Alexandre Sergueevitch Puschkin (1799-1834), o mais popular poeta russo de todos os tempos. Entre outros, apontou Camões como exemplo.

Como romântico que era, Alexandre Puschkin, o criador da língua literária moderna russa foi inspirar-se na cultura antiga do seu povo, passando a versos lendas e contos como "Ruslan e Ludmila". As suas incursões pela história russa deram origem a obras-primas como o drama histórico "Boris Godunov".Mas Puschkin é igualmente um grande poeta lírico, com raízes profundas e fecundas na cultura europeia. Ao fazer a defesa do soneto, em que foi um grande mestre, apresenta como argumento a obra de grandes poetas clássicos da Europa. Em 1830, escrevia: "O rigoroso Dante não desprezava o soneto / Nele Petrarca derramou o fogo do amor; / O criador de Macbeth gostou dele como um jogo; / Camões envolveu-o de mágoa."Não se pode deixar de assinalar que esta não é a única vez em que Alexandre Puschkin recorda o grande Luis de Camões. No primeiro poema por ele publicado "Ao amigo poeta" (1814), apresenta o poeta luso como um dos exemplos flagrantes do destino dramático dos homens das letras: "Todos elogiam os poetas, mas apenas as revistas os mantêm; / A roda da Fortuna passa ao lado deles; / Rousseau nasceu e morreu nu;/ Camões partilhou o leito com miseráveis; / Kostrov morreu esquecido num sótão, / Foi enterrado por outros: / A vida deles é um rosário de tristezas, a glória não passou de um sonho". Os contactos de Puschkin com a cultura e a literatura portuguesas não se ficaram por aqui. Depois da sua morte, os editores do poeta publicaram o poema "Do português", que se trata de uma tradução livre das "Recordações" do poeta português Tomás de Gonzaga (1744-1807).Alexandre Puschkin não sabia português e os estudiosos da sua obra consideram que o poeta russo conhecia a obra de Camões e de Tomás de Gonzaga através de traduções francesas. Ele podia também ter tido acesso à primeira tradução de "Os Lusíadas", feita por A. Dmitriev, em prosa, a partir do francês, e publicada em 1788.Mas Puschkin também deve ter sabido da existência de uma cultura tão longínqua como a portuguesa por intermédio dos seus amigos russos que a conheciam e das pessoas de origem lusa com quem o poeta privou. Poderia ter entrado em contacto com a poesia de Camões através do seu mestre e amigo, outro grande poeta russo Vassili Jukovski (1783-1852). Este literato criou o poema "Camões", uma tradução livre de uma obra do alemão Friderich Halm.Outro amigo de Alexandre Puschkin, o bibliógrafo Serguei Sobolevskii (1803-1870), poderia ser um dos elos de ligação entre ele e a cultura portuguesa, pois Sobolevskii dedicou uma boa parte da sua vida ao estudo das literaturas portuguesa e brasileira.Este bibliógrafo, além das disciplinas do programa do liceu, dedicou-se, sozinho, ao estudo de línguas estrangeiras, incluindo o espanhol e português, que, segundo testemunhos da época, dominava livremente. Em 1829, empreende uma longa viagem por países europeus, passando também por Portugal. Mas, ainda antes disso, em 1827, publica na revista "Moskovskii Vestnik" o artigo "Notas sobre a Literatura Portuguesa".O amigo de Alexandre Puschkin acompanhava de perto a vida literária portuguesa. Quando, em 1861, o bibliógrafo português Inocêncio Francisco da Silva lhe escreve uma carta queixando-se que a publicação da sua monumental obra "Diccionario bibliográfico portuguez" parara no quinto volume devido à falta de dinheiro, Serguei Sobolevskii responde-lhe, considerando-se perplexo e desiludido pelo facto de o governo português se recusar a subsidiar "edição tão importante para a literatura nacional".A carta do intelectual russo foi publicada por Teixeira de Vasconcelos no jornal "Revolução de Dezembro" (29 de Dezembro de 1861) e o deputado Torres Almeida levou o caso à câmara baixa do parlamento português, utilizando a missiva de Sobolevskii para criticar a política cultural do governo de Lisboa. Isto levou a que se conseguissem rapidamente meios financeiros para continuar a publicação da obra de Inocêncio Francisco da Silva.Orgulhoso pelo trabalho por si realizado, conta a sua façanha aos leitores russos num artigo com o título sugestivo: "Da influência da Alameda Smolenski / em Moscovo / no Parlamento Português / em Lisboa/". Escusado será dizer que nessa alameda estava situada a casa do próprio Serguei Sobolevskii.Infelizmente, somos obrigados a constatar que os russos conhecem bem melhor a literatura lusa do que os portugueses conhecem as obras dos prosadores e poetas russos. E no ano do 200º aniversário do nascimento de Puschkin, em Portugal publica-se um "Diário Íntimo" que se diz ser escrito pelo poeta russo, mas nada tem a ver com ele (Ver Leituras de 3 de Abril último). Na Rússia, volta-se a editar uma vez mais "Os Lusíadas" e a obra lírica de Luis de Camões. A diferença continua a ser gritante.

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