Enfim, a demissão
Jaime Gama vai acumular os Negócios Estrangeiros com a Defesa. Foi a solução rápida e com o necessário "peso político" que Guterres encontrou e que os militares queriam. Veiga Simão teve uma conversa breve com o primeiro-ministro e deixou-lhe uma carta de duas páginas em que tira uma única conclusão: "Enfim, fui traído". Para Guterres foi enfim, a demissão que há muito se anunciava. O PÚBLICO revela na íntegra a carta de demissão de Veiga Simão. Nesta edição é ainda explicado porque é que o segredo de Estado foi violado e a guerra que estalou entre o Governo e o Parlamento.
"Enfim, fui traído". Veiga Simão não tem dúvidas que foi alvo de uma "traição" que teve como cenário a Assembleia da República e, por isso, não lhe restava mais nada senão "assumir as consequências". Foi isso que disse a António Guterres numa conversa de dez minutos, em S. Bento, às 15.00, e que escreveu numa carta de duas páginas que deixou ao primeiro-ministro e que o PÚBLICO revela na íntegra (ver neste destaque). Lembrando que em política "contam as aparências, às vezes mais do que as realidades" e que, sobretudo, " contam muito pouco os sentimentos". A política é impiedosa, já se sabia.A carta de Veiga Simão é, de certo modo, uma espécie de crónica de uma demissão há muito anunciada ou, pelo menos, desde que o "caso SIEDM" estoirou na actualidade política, com as acusações do ex-director dos serviços Monteiro Portugal, que atribui a Veiga Simão uma ordem para "mandar vigiar generais e almirantes". Desde esse momento das acusações - não provadas de Monteiro Portugal - que, no entanto, era visível um facto de inegável valor político: Veiga Simão estava debaixo de fogo. Na oposição, no PS e, até, no Ministério da Defesa e em alguns sectores das Forças Armadas. O escândalo da lista dos funcionários do SIEDM acabou por ser uma saída que a todos serviu. O envio da documentação foi concretizado pelo seu chefe de gabinete, brigadeiro Cipriano Alves e pelo controverso auditor jurídico, Nelson Rocha, mas Veiga Simão nunca pôs em causa que as responsabilidades políticas eram suas e só suas.O ex-ministro percebeu na quinta-feira à noite que não lhe restava outra alternativa. Cancelou uma viagem oficial à Alemanha, esperou que António Guterres chegasse ontem de Paris e já levava a carta de demissão preparada. Assim que saiu da conversa com Guterres, eram 15.10, dirigiu-se para o Ministério da Defesa e reuniu os membros do seu gabinete para lhes transmitir que ia embora. Depois ainda ficou a trabalhar no ministério até às 20.30 horas. Foi o fim do seu último dia no Governo e aquele em que transmitiu a pasta.E assim Jaime Gama acumula, a partir de hoje, os Negócios Estrangeiros e a Defesa. Foi a maneira que Guterres encontrou de resolver rápida e sem mais dores o escândalo provocado com a divulgação da lista dos agentes da secreta militar à Assembleia da República. O objectivo principal de Gama, neste momento, é restaurar a credibilidade dos serviços secretos, para a qual conta com a capacidade do recém-empossado chefe do SIEDM, Bramão Ramos, um nome que o próprio Gama tinha sugerido a Guterres para ocupar a cadeira em que Nelson Rocha não chegou a sentar-se. José Penedos mantém-se como secretário de Estado. António Guterres telefonou a Jaime Gama ao meio-dia, logo que chegou de Paris, já com a decisão de pôr fim ao consulado de Veiga Simão, mas ainda sem soluções para o cargo. Pediu ao ministro dos Estrangeiros que avançasse nomes. Gama sugeriu Eduardo Pereira - um histórico gamista, actual deputado do PS que subscreveu a moção de Manuel Alegre e antigo ministro da Administração Interna - mas Guterres não colheu a ideia. Depois do almoço, o primeiro-ministro voltou a telefonar a Gama (para o restaurante Gambrinus, onde o ministro dos Estrangeiros almoçava) já com a tese da "acumulação" de pastas artilhada. Por cinco meses, Gama aceitou. Concordando com a manutenção na pasta da defesa de José Penedos, também por cinco meses, que assegurará assim a continuidade da máquina da Defesa. Para Gama, a saída de Veiga Simão acaba por ser um alívio, conhecidos que eram os choques contínuos entre o ministério dos Estrangeiros e o da Defesa, que por definição têm que gerir matérias em conjunto. Recentemente, a guerra entre os dois ministérios atingiu um ponto crítico, quando Monteiro Portugal (um nome sugerido por Gama para a secreta militar que abriu uma guerra sem quartel com o ex-ministro da Defesa), embaixador de carreira, esteve prestes a ser colocado como representante de Portugal no exterior. Veiga Simão disse que se demitia e Guterres evitou o que desta vez foi impossível - a remodelação, ainda que cirúrgica.A ideia de colocar Gama a acumular as pastas dos Estrangeiros e da Defesa tem como sustentação básica o facto de faltarem apenas menos de cinco meses para as eleições legislativas. A acumulação a longo prazo seria incomportável, mas a curto resolve o problema que Guterres já tinha sentido quando foi preciso substituir António Vitorino: o de encontrar um nome politicamente forte, que possa ser bem recebido pelas chefias militares. A cinco meses das legislativas, a tarefa (que foi difícil da outra vez, quando o primeiro-ministro chegou ao nome de Veiga Simão depois das recusas de Jaime Gama e António Costa) seria praticamente impossível. Gama tem a vantagem de, no tempo em que o PS estava na oposição, ter ocupado os cargos de "ministro-sombra" tanto dos Negócios Estrangeiros (pasta que tinha ocupado no bloco central) como da Defesa (de cuja comissão parlamentar foi presidente durante seis anos.