O fotógrafo e o seu duplo em Veneza

Jorge Molder representará Portugal na Bienal de Veneza deste ano. A fotografia é o seu meio de expressão, o retrato é o seu tema, o modelo é o próprio artista. Mas não se trata de uma simples exposição de fotografia, de uma mera galeria de retratos ou, sequer, do que poderíamos designar por trabalho de auto-representação. A escala e encenação das imagens remete para o domínio das artes plásticas, os rostos sugerem máscaras mais do que tipos psicológicos e, por isso, o artista-modelo é mais um duplo de si mesmo, um actor, do que alguém que deseje revelar a sua alma.

Trinta e seis fotografias de um nova série, "nox", ocuparão, a partir de 9 de Junho e até 7 de Novembro deste ano, as salas do setecentista Palazzo Vendramin dei Carmini. Um catálogo de 90 páginas com textos do comissário da exposição, Delfim Sardo, crítico de arte, professor e consultor da Fundação Calouste Gulbenkian, do próprio fotógrafo e uma monografia retrospectiva. Este trabalho monográfico da obra de Molder mostra 160 imagens das séries de auto-retratos reordenadas não por ordem cronológica mas segundo novas associações ficcionais e textos de Delfim Sardo, Ian Hunt e uma entrevista dirigida por John Coplans, também ele fotógrafo, que será edita em simultâneo pela Electa, editora italiana, e pela Assírio & Alvim. A operação, que repete a estratégia usada em 1997 para a promoção e apresentação do pintor Julião Sarmento na mesma bienal e no mesmo palácio, é suportada pelo Ministério Negócios Estrangeiros e pelo Ministério da Cultura, através do Instituto de Arte Contemporâneo. O contexto das futuras intervenções oficiais de Portugal prevê a construção de um pavilhão próprio entregue a Siza Vieira e que apenas espera luz verde da municipalidade veneziana que não urbanizou ainda o vasto terreno contíguo ao núcleo principal da bienal, os Giardini. Jorge Molder (n. 1947) é actualmente director do Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian. Pratica fotografia desde os 17 anos e expõe desde 1978. Sempre associou a sua imaginação visual à literatura (exposições em colaboração com Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge, 1981) e a outras artes (exposição com Jorge Martins, 1985, ou com Gaëtan, 1988). Mas, no carácter ficcional das suas imagens, não há uma lógica ilustrativa, pelo contrário, há uma intensa liberdade de circulação semântica e formal - as imagens abrem-se ao discurso literário, criam-no. A criação de séries fotográficas é essencial a esta lógica e é, segundo Molder, o equivalente de um jogo para o qual se parte com as regras definidas que a prática vai alterando.Os textos de Delfim Sardo, marcando a importância desta lógica serial, estabelecem um paradigma extremamente produtivo para o entendimento das estratégias que o próprio fotógrafo confessa serem as suas: que não trabalha na área estanque do auto-retrato e que se assume como actor em acção performativa. Daí que estejamos no campo do duplo e da duplicidade, "uma novela policial semeada de pistas falsas, um puzzle cujas peças funcionam em inúmeras combinatórias", como escreve Sardo, no catálogo. Num filme que acompanha a promoção da exposição - "Por aqui quase ninguém passa", de José Neves - o artista diz que a utilização, desde 1990, da sua própria imagem provoca o nascimento de uma personagem que não coincide exactamente consigo: um "personagem arbitrário" que "não pertence bem ao real", "um ser intermédio", pelo qual sente às vezes simpatia outras antipatia, no qual às vezes se reconhece e outras não, um ser na "fronteira entre o dramático e irónico". Vejamos o jogo vertiginoso dos seus títulos: esta série é "nox" (noite), o que para além do sentido simbólico imediato estabelece puros jogos formais/fonéticos com uma outra série "inox", de 1995. Este título nada tinha a ver com aço, é sim cifra de Inocêncio X, o papa que, retratado por Velásquez, teria dito, desagradado da sua imagem, "Troppo Vero". Desta frase tirou Molder o título de outra série, "T.V.", de 1996... A mesma solução que, a propósito da ideia de desaparecimento e apagamento da imagem, usa em "Cd", de 1998, abreviatura do "Cartago delete" de Catão mas também de Compact Disc ou, de novo, da tecla "delete" dos computadores ...O trabalho de Molder nasce e cresce a partir daquelas características e do que, de novo no depoimento filmado, ele próprio designa como "teimosias" e "práticas apaixonadas e persistentes" relativas a certos objectos, temas e ideias. Nasce da capacidade de gerir "o que se deseja e o que realmente acontece". Ao centrar-se na sua imagem sem desejar fazer retratos psicológicos Molder pergunta-se: "O que pode em mim interessar aos outros?" E responde: "O que é genérico." Sem ser tema explícito, é a ideia de que "tudo caminha para a morte" que faz essa unificação. O que na série "nox" se revela como ideia de queda e de desaparecimento.Uma coisa são as 36 fotografias encenadas nas salas do Palazzo Vendramin, em Veneza, outra é o processo da sua realização. É alguma coisa deste longo processo que o filme de José Neves revela. Molder é filmado a fotografar e filmado a revelar as fotografias. Assim a fotografia surge filmada ainda antes de ter sido revelada e a imagem que a fotografia fixará foi registada em filme antes de poder ser vista pelo fotógrafo. O cinema - se falássemos de um directo televisivo ou de um vídeo digital a afirmação teria ainda mais pertinência - usa então uma matriz técnica similar à da fotografia e rouba-lhe o tempo. É um acto imediato que se adianta à revelação lenta das imagens segundo os processos químicos tradicionais (pré-digitais, eles também) que a fotografia a preto e branco e nas dimensões utilizadas por Molder implica. Sabemos que ele, paralelamente, usa a cor através da Polaroid. Aqui o imediatismo (a relação acção/imagem) é maior mas o fotógrafo, sem desvalorizar o método e os resultados, remete a Polaroid para o campo dos estudos - "aguarelas", é como classifica essas séries. Numa das cenas mais belas do filme vemos, na luz vermelha da câmara escura, um papel mergulhado no banho de revelação: no suporte branco nasce lentamente uma forma, nasce uma imagem, um rosto. Nasce uma fotografia. E é na luz projectada do filme (ou na solução mais comum do ecrã televisivo) que ela nasce e se nos revela.Temos portanto um filme que funciona por antecipação e por desvendamento. Nesse sentido é um filme que pode ser tido como o único, o verdadeiro, o mais próximo retrato do artista. Por paradoxo, poderíamos mesmo falar de auto-retrato - na medida em que o fotógrafo conscientemente se auto-representa, se apresenta no seu papel, em processo de trabalho. Porém, no final do filme, Molder debruça-se sobre todas as provas de trabalho em tamanho natural que utilizou na simulação de montagem que fez nas paredes do palácio, dobra-as sem cuidado e rasga-as em pedaços. Prudência autoral em relação a imagens mal impressas mas acção simbólica também. Molder refere no longo depoimento o seu fascínio pela prestidigitação, pelo trabalho do mago frente ao público. O que o público vê não é aquilo que realmente acontece. A acção pública do mago é máscara de uma outra acção: a primeira esconde a segunda mas é esta sua acção sub-reptícia que garante o êxito do resultado final. A imagem fotográfica é um tempo final: discurso sincrónico apresentado como uma evidência ao espectador sem que este veja nenhuma das acções que a ele conduziram. No filme de José Neves, Molder revela todo o processo (os truques) que conduz à imagem final. Parece que poderíamos ter penetrado no coração do sentido dos seu trabalho ao vê-lo dobrar-se sobre um banco e sujeitar-se a sucessivas poses e ensaios falhados, ao perceber como resultam tão trágicas as suas cabeças suspensas no negrume, ao descobrir os laços emocionais entre os membros da equipa de trabalho, ao entender como a dramaticidade de um rosto tenso, desenho de luz e sombra, pode surgir apenas depois de várias crises de riso incontido. Mas, neste filme, Molder é um mago que finge despir-se dos seus poderes perante os neófitos. Afinal tudo o que importava saber fica ainda por dizer. Uma das maneiras de manter o fascinante brilho negro do seu trabalho é a própria lógica da série, porque o que passamos a saber em relação a uma imagem ou a outra são pormenores técnicos, curiosidades materiais. O sentido das acções rituais, das máscaras que lhe cobrem o rosto permanecem de impossível nomeação. Uma ficção veneziana coloca uma mulher de rosto tapado empurrando Molder pelas ruas desertas e nocturnas - a cena repete-se muitas vezes até ele ficar sozinho frente ao leão de Corto Maltese. Sob a névoa pesada da laguna a voz de Molder vai pensando como uma voz sem corpo: fala do que há de difuso na própria realidade da imagem, fala da morte, em Veneza.

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