Finalmente, o sonho...
Com os prodígios dos violinos dos JPP e da "trikitixa" de Kepa Junkera, o festival Cantigas do Maio arranca hoje na Fábrica Mundet, no Seixal. No ano da celebração em conjunto do seu 10º aniversário e do 25º da revolução de Abril. Um programa de luxo onde vão estar presentes alguns dos revolucionários da "world music" actual.
O aguardado concerto, de Andrea Bocelli, na quarta-feira à noite, no Pavilhão Atlântico, em Lisboa, provocou uma verdadeira inundação de gente no Parque das Nações, fazendo lembrar os dias mais movimentados da Expo-98. O PÚBLICO apurou que os bilhetes para o espectáculo esgotaram "completamente", de acordo com a produtora Dell'Art, a responsável pela organização do concerto. No "mercado-negro" ter-se-ão chegado a vender bilhetes de 50 a 70 contos, revelou a mesma fonte - quando os seus preços reais oscilavam entre cinco e vinte mil escudos.A multidão aglomerou-se às portas do Pavilhão Atlântico e os parques de estacionamento encheram. No fim, havia mais de dez mil pessoas a aplaudir Bocelli. E se mais não entraram foi porque a organização decidiu deixar dois sectores de 500 lugares por ocupar (num recinto com uma lotação para 11 mil e 500 pessoas) por estes não permitirem uma boa visibilidade do espectáculo, disse ao PÚBLICO um dos elementos da Dell'Art. O fenómeno Bocelli - tenor híbrido com um pé na música ligeira e outro na ópera - com milhares de fãs no mundo inteiro tem feito correr rios de tinta nos últimos tempos,especialmente desde que se anunciou a sua vinda a Portugal. O grande dia chegou e não foram os avultados preços dos bilhetes que demoveram os seus adeptos - uma prova mais da fácil permeabilidade do público português ao que está na moda... O cantor, que é cego desde os 12 anos, está no top de discos há semanas e semanas e, depois, até tem uma certa aura de intérprete erudito, o que sempre fica bem!Mas os que se deslocaram ao antigo Pavilhão da Utopia com o intuito de saborear os trechos do seu último álbum, "Sogno" tiveram que penar ao longo de quase duas horas ao som de algumas das árias e peças instrumentais mais populares do repertório operático italiano e não só, e que se contentar com as três canções ligeiras extraprograma. O esforço compensou. Foi aqui que Bocelli se entregou verdadeiramente e que o entusiasmo do público - um tanto apático durante dois terços do concerto - atingiu o rubro, sobretudo quando ouviu "Sogno" e "Con te partiro", este último em parceria com a soprano Liliana Marzano.Mas, afinal, qual foi o desempenho do tenor mais badalado da actualidade? Bocelli tem uma belíssima voz, de potência e qualidade tímbrica invejável, extensão ampla e homogénea, agudos fáceis..., enfim, o potencial de um bom tenor lírico. Só que falta qualquer coisa. E o mais preocupante não são sequer ocasionais problemas técnicos, superáveis com trabalho adequado, ou a falta de agilidade na ornamentação (nem todos os tipos de voz se prestam a um domínio exímio da coloratura), mas a ausência de subtileza e de maior maturidade interpretativa. As célebres árias "Questa o quella" e "La donna e mobile", da ópera "Rigoletto", de Verdi, foram debitadas com rigidez de fraseado, ausência de nuances, acentuações demasiado forçadas ou indevidas e finais exagerados para puxar o aplauso. Em Puccini, Bocelli melhorou bastante - "E lucevan le stelle" conseguiu ser tocante - e as canções e extractos de operetas da segunda parte, foram mais satisfatórias, com um ponto alto em "Torna a Surriento", de De Curtis. Até esta altura, o tenor tinha mantido um certo distanciamento. Mas aqui a emoção veio ao de cima e a sua atitude atingiu o mesmo à-vontade com que lida com as canções que têm sido responsáveis pelo seu sucesso comercial. A repercussão junto do público - na sua maioria por volta dos quarenta anos, que entretanto já tinha começado a sair do seu torpor - foi imediata. A partir daí não deixou de crescer. Deste modo, os três encores foram o momento mais genuíno do concerto.A actuação de Bocelli foi dividida com Liliana Marzano, detentora de uma voz atraente de soprano lírico (mas com demasiado vibrato) que teve um dos seus melhores momentos na "Ária de Vilja", da "Viúva Alegre", de Lehar. Apesar de muito aplaudidos os duetos poderiam ter sido mais equilibrados em termos de volume sonoro e sintonia interpretativa.O suporte instrumental foi fornecido pela Orquestra do Norte, sob a direcção de Marcelo Rota, que interpretou também algumas peças instrumentais. Uma prestação difícil de avaliar num recinto com as dimensões do Pavilhão Atlântico com uma acústica inadequada para este tipo de formação (a amplificação sonora não é a solução ideal). Mesmo assim, entre as peças ouvidas merece um destaque especial a divertida abertura da opereta "O Morcego", de Johann Strauss.No fim de tudo, fica uma certa sensação de desconsolo. Quer para os "verdadeiros adeptos" da ópera (qual seria a sua percentagem entre as 11 mil pessoas que enchiam o recinto?), habituados a outro "savoir-faire" e a outras condições acústicas, quer para o público em geral, consumidor insasiável e acrítico de fenómenos mediáticos, que apenas vislumbrou uma pequena amostra dos seus trechos de culto.