A pintura que chama pelas palavras
Centenas de obras sobre papel de Mário Botas, um artista plástico português que adquiriu um estatuto mítico, estão em exposição no Centro Cultural de Belém. Trata-se da primeira retrospectiva global da sua obra, que até agora, 16 anos depois da sua morte, continuava por estudar e catalogar.
O público mais jovem pouco terá ouvido falar de Mário Botas. E, para isso, poderão apontar-se várias razões. Primeira, a obra que deixou foi quase inteiramente feita sobre papel - e o papel só recentemente começou a adquirir, aos olhos desse mesmo público, um valor próprio e uma conotação de autonomia que, desde sempre, como subalterno da pintura e da escultura, lhe estiveram negados. Depois, Mário Botas nunca se inseriu em nenhuma escola ou movimento: conhecem-se-lhe as afinidades com alguns dos surrealistas portugueses, sobretudo das gerações mais novas, o interesse que sentiu por alguns alguns artistas nacionais que, de algum modo, se ligaram à Pop inglesa, como Batarda e Paula Rego, e é tudo. Talvez por isso, por uma razão e por outra, Mário Botas surja nas histórias da arte portuguesa num lugar marginal, quando surge. Marginal e inclassificável.A exposição, que hoje abre ao público no Centro Cultural de Belém, surge assim aureolada de uma interrogação. Porquê, agora, neste final da década de 90, uma retrospectiva da obra de Mário Botas? Que acréscimo de significado possuem agora estes desenhos, acréscimo esse eventualmente justificado por um novo olhar sobre o fazer e o ver a arte, uma revalorização de técnicas e estilos (a tinta-da-china, a aguarela, a figuração de natureza fantástica, o papel, o "pessoal" e o "íntimo" e, porque não dizê-lo, a arte como expressão da riqueza interior) que só agora (e não há cinco ou dez anos ) será possível - como possível foi o sucesso da exposição de Francesca Woodman, que imediatamente precedeu esta?Ficarão as perguntas. Os factos são outros, e resumem-se rapidamente. Mário Botas nasceu em 1952, na Nazaré. Tirou o curso de Medicina. Aos 25 anos, foi-lhe diagnosticada uma leucemia. Abandonou então a prática profissional, e passou a dedicar-se exclusivamente à pintura até à data da sua morte, em Setembro de 1983, aos 31 anos.Era um apaixonado por teatro, ópera e, sobretudo, por livros, com os quais a sua pintura manteve sempre uma relação, não de subordinação, como acontece na ilustração clássica, mas de igualdade. Tinha obras que preferia a todas as outras, revisitando incessantemente as mitologias e os sistemas de pensamento fundadores da civilização ocidental, autores portugueses como Camões, Pessoa e Sá-Carneiro, Rimbaud e, evidentemente, Baudelaire; de quem se chegou a reivindicar co-autor, assinando junto ao seu nome e mudando o título de um livro de "Spleen" para "Spleen de moi-même". A relação privilegiada que mantinha com as letras acabaria por conduzi-lo à escrita, em obras onde esta se desenvolve por associações e elipses que, afinal, se assemelham ao próprio processo de génese dos seres que povoam os seus desenhos. Disse, certa vez, que o que pintava gostava "de se encontrar com as palavras, sobretudo com as palavras dos outros"; e assumia plenamente esta vocação literária da sua obra, que levou a que lhe chegassem a chamar pintor-poeta.A exposição surgiu por iniciativa da Fundação Casa-Museu Mário Botas, sedeada na Nazaré, presidida pelos escritores Almeida Faria e José Manuel Vasconcelos, que detém e guarda um espólio de mais de 500 obras do pintor. Margarida Veiga, que dirige o Centro Cultural de Belém, foi a responsável de todo o trabalho de pesquisa, inventariação e estudo deste espólio, bem como das obras que estão nas mãos de coleccionadores particulares e de que se desconhecia o paradeiro. "Foi um trabalho de investigação que nos demorou dois anos a concluir." O resultado está à vista: seis núcleos simultaneamente cronológicos e temáticos, que vão desde as primeiras obras, ainda de cariz surrealizante, onde predominam os "cadavres-exquis" realizados com Cruzeiro Seixas, Cesariny, Paula Rego, Manuel Casimiro e Raul Perez; aos outros, que cobrem, por exemplo, as obras que têm por tema figuras da literatura ou da ópera, ou até, o romantismo alemão muito à maneira de Friedrich.Mas é o último núcleo, que reúne os desenhos feitos nos últimos meses de vida que, pelo dramatismo que encerra, concentra ao mesmo tempo toda a obra e todas as grandes questões que ela levanta. Formalmente, como já acontecia antes, tratam do corpo; mas de um corpo fragmentado, maltratado, frequentemente pintado de tonalidades que associamos à escuridão (pelo preto, que é ausência de cor) ou à decomposição. Surge frequentemente uma mulher, encarnação da morte, como muito bem analisa Ruth Rosengarten num dos textos do catálogo. E o próprio pintor, figura omnipresente, frequentemente sob qualquer heteroforma, aqui na sua condição de auto-retrato pintado. Que permanece, para além de todas as tentativas de mitificação.