A poluição escondida de Estarreja
O complexo industrial de Estarreja sempre foi um dos pontos negros da poluição em Portugal. Há cinco anos, já se traçava um quadro preocupante da contaminação da água, fruto de décadas de descontrolo no armazenamento de resíduos perigosos. Análises recentes mostram, com uma clareza até agora inédita, que os sedimentos do esteiro de Estarreja tem concentrações brutais de poluentes como o arsénio e o mercúrio. Nem o esteiro, nem os aquíferos, porém, serão limpos num futuro próximo, embora a água poluída continue a ser utilizada para regar os campos. Mas o confinamento adequado das pilhas de resíduos acumuladas dentro do complexo industrial vem a caminho, integrados no projecto Erase. O estudo de impacte ambiental deste projecto já está no Ministério do Ambiente e poderá ser colocado brevemente em consulta pública.
A herança tóxica acumulada em Estarreja, ao longo de quase meio século de produção industrial, é ainda maior do que se imaginava. Análises recentes aos solos do complexo industrial, de duas valas de drenagem e do esteiro de Estarreja revelam concentrações brutais de metais pesados - especialmente arsénio, mercúrio e chumbo - que nunca haviam sido identificadas em tamanha magnitude.As análises foram realizadas no final do ano passado, no âmbito do projecto Erase - destinado à recuperação dos solos contaminados pelos resíduos das indústrias químicas do concelho, e cujo estudo de impacte ambiental deverá ser colocado brevemente em consulta pública. Em 1994, uma primeira campanha de amostragem já indicara níveis elevados de poluição, sobretudo da água subterrânea. Agora, a atenção voltou-se mais para os solos, através da recolha de centenas de amostras. O resultado foi um retrato bastante mais pormenorizado - e mais gravoso - dos efeitos de práticas hoje inconcebíveis, como a descarga de esgotos industriais contaminados para linhas de água ou a acumulação de resíduos perigosos em montes a céu aberto - que estiveram no dia-a-dia de Estarreja desde a década de 50 e que, em alguns casos, ainda se mantêm.Os piores números foram encontrados no esteiro de Estarreja - um pequenino braço da ria de Aveiro. O esteiro desagua numa espécie de baía, conhecida como largo do Laranjo, a qual, por sua vez, está ligada à ria. Até hoje, os efluentes das indústrias químicas de Estarreja, embora tratados, são despejados naquele curso de água. No passado, as descargas eram feitas para um rego - a Vala de São Filipe -, que, atravessando campos agrícolas, vai dar ao esteiro.O principal poluente encontrado nas margens e no leito destas linhas de água foi o arsénio - uma substância altamente tóxica e cancerígena. As concentrações de arsénio atingiram, em dezenas de amostras, o valor de um grama por quilograma, muitas ficaram acima de 10 gramas por quilograma e pelo menos uma superou 20 gramas por quilograma. Valores desta ordem significam que, se fosse possível fazer uma separação perfeita, por cada 50 camiões contendo o material retirado do esteiro, um estaria carregado só com arsénio.Não existe, em Portugal, legislação que estabeleça valores máximos para a concentração de poluentes no solo. Na Holanda, solos com mais de 50 miligramas por quilograma de arsénio devem ser alvo de descontaminação. Dois terços das amostras recolhidas no esteiro de Estarreja estão acima deste limite. Números igualmente assustadores foram encontrados para o mercúrio, com mais da metade das amostras a falharem o limite máximo de 10 miligramas por quilo, segundo a norma holandesa. Alguns resultados também chegaram à ordem de grandeza de um grama por quilo. A seguir vem o chumbo, com níveis de contaminação elevados, mas em menos pontos de amostragem.Os novos valores agora encontrados fizeram os responsáveis do projecto Erase repensar a ideia de limpar o esteiro - o que se previa através da dragagem de um metro do seu leito e margens. "Alguns dados surpreenderam-nos", admitiu Luís Arroja, coordenador do Programa Específico para o Desenvolvimento e Requalificação Ambiental de Estarreja (PEDRAE), no qual está integrado o Erase.O que mais surpreendeu, segundo Luís Arroja, não foram tanto os níveis de contaminação, mas sim a sua distribuição desordenada ao longo dos dois quilómetros iniciais do esteiro. "Encontrámos situações perfeitamente absurdas", explicou Arroja. Entre as dez secções onde foram recolhidas amostras, os níveis de poluição variam de tal forma que é impossível estabelecer um padrão da contaminação.O mais preocupante, porém, é o facto de as análises não terem permitido definir, contrariamente ao que se desejava, onde termina a zona poluída. De um modo geral, quanto mais fundo se escava, mais contaminados estão os sedimentos do esteiro de Estarreja. Seria necessário buscar amostras a uma profundidade maior para se determinar onde começa a decrescer a concentração de arsénio, mercúrio e chumbo. Também lateralmente a poluição não está contida na faixa que foi alvo de amostragem, a qual chega até seis metros a partir das margens.Neste cenário, retirar uma camada de um metro de solos e sedimentos - como estava previsto - seria um erro perigoso, pois a parte mais contaminada ficaria exposta, em contacto com a água, aumentando o risco da poluição ser transportada para a ria de Aveiro e entrar na cadeia alimentar. De qualquer forma, o nível de contaminação encontrado impede que, pelo menos, os sedimentos sejam retirados do leito do esteiro, segundo a legislação nacional para a deposição de dragados. O material do esteiro de Estarreja estaria classificado como sendo de classe 5, que "idealmente não deverá ser dragado" ou, se dragado em caso imperativo, deve "ser tratado como resíduo industrial, sendo proibida a sua imersão e a sua deposição em terra" - o que o deixa praticamente sem solução em Portugal.A despoluição do esteiro ficará, assim, de fora do projecto agora submetido ao Ministério do Ambiente. "Isto, se calhar, é um assunto a ser apreciado no âmbito de uma associação de municípios", opinou José Manuel Luzes, director do agrupamento de empresas constituído pela Adubos de Portugal, Uniteca, Quimigal e Cires, mais a Câmara Municipal de Estarreja, para gerir o projecto Erase.O que o Erase se propõe a fazer, agora, é confinar adequadamente a monumental quantidade de resíduos que se acumulam, há décadas, na zona industrial de Estarreja. São cerca de 300 mil metros cúbicos de cinzas e escórias de pirite contaminadas com arsénio e lamas contendo mercúrio.Esta tarefa era considerada prioritária já há cinco anos, quando um primeiro levantamento do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) revelou uma acentuada contaminação da água subterrânea na zona de influência do complexo industrial de Estarreja. O LNEC não só propunha o isolamento dos resíduos, que são a principal fonte de poluição dos aquíferos, como a descontaminação da própria água subterrânea - uma tarefa ciclópica, que não foi concretizada. "Se [com as medidas previstas] a evolução for positiva, pode não ser preciso descontaminar o aquífero", avaliou Luis Arroja. Enquanto isso, a população local continua a utilizar água dos poços poluídos, no mínimo para regar as suas culturas."Eu não consigo discutir o projecto Erase sem discutir todas estas questões", afirmou, por sua vez, o presidente da associação ambientalista Cegonha, Miguel Oliveira. "É claro que eu prefiro que os resíduos estejam num aterro controlado. Mas não me venham dizer que isto vai regenerar o ambiente em Estarreja", sentenciou.