Uma noite na pópera

Uns vêem-no como a consumação do colapso do espírito da música clássica. Outros chamam-lhe visionário, ao estabelecer pontes entre o erudito e o popular. Para ambos, Andrea Bocelli não faz pop nem ópera - faz "pópera". Depois do concerto no Porto, o tenor italiano regressa a Portugal para um par de concertos. Na Póvoa e em Lisboa.

Quem se deslocou sem aviso no passado dia 14 de Maio ao centro da cidade do Porto estranhou certamente o mar de gente que aí se encontrava apinhada. Uma sublevação dos habitantes da Invicta em prol da bendita causa regionalista? Um erro de secretaria que roubou o "penta" à maior instituição da cidade? Não. Tudo se deveu ao concerto privado de Andrea Bocelli que assinalou os 80 anos do BPA, transmitido em ecrã gigante para as principais avenidas portuenses. O tenor italiano regressa agora a Portugal, para um par de actuações nos dias 25 e 26, respectivamente no Salão de Ouro do Casino da Póvoa, na Póvoa do Varzim, e no Pavilhão Atlântico, no Parque das Nações, em Lisboa. Na bagagem, Bocelli não traz apenas "Sogno", o seu último álbum. Traz também os ódios e as paixões que o transformavam em poucos anos no último grande baluarte da cultura popular.O fenómeno Bocelli é indissociável da crescente "popularização" a que a figura do tenor foi submetida ao longo da última década. Embora seja historicamente tido como o parente querido do mundo da ópera, admirado e louvado por plateias um pouco por todo o mundo, a promoção do tenor à categoria de estrela pop não é mais que recente. Este facto ficou a dever-se em grande parte ao aparecimento dos Três Tenores - Placido Domingo, Jose Carreras e Luciano Pavarotti -, uma tríade de vozes maiores que se viu transformada em pouco tempo numa poderosa indústria financeira, acompanhando a par e passo a lógica dos corporativismos modernos. Domingo, Carreras e Pavarotti entoam árias populares em estádios de futebol cheios, os seus discos vendem aos milhões e, na verdadeira tradição pop, as suas vidas privadas fazem já parte do domínio público. Quando comparados com os três tenores originais - Enrico Caruso, Beniamino Gigli e Tito Schipa -, os melómanos são levados, com maior ou menor reserva, a estabelecer aproximações qualitativas entre ambos os trios. Mas são poucos os que ainda toleram a já célebre imagem de Pavarotti a lambuzar-se com "spaguetti" numa apetitosa refeição italiana. Esta sim, a maior de todas as diferenças. O aparecimento de Bocelli não só acompanha os sinais dos tempos modernos como intervém no seu próprio processo histórico de evolução. Cantor nascido há 41 anos na Toscânia, Itália, ele é a metáfora perfeita da encenação pop escondida por detrás da muito erudita máscara da música clássica. Boccelli procura resguardar os seus princípios, tendo gravado um punhado de álbuns direccionados para a tradição operática que a crítica musical não se tem cansado de receber de braços abertos. A título de exemplo, "The Opera Album", o primeiro álbum operático de Bocelli, foi apelidado pela bíblica "Gramophone" como "uma formidável colecção de árias", interpretadas por "um tenor dotado de dons naturais" que "se move sobre uma vasta gama tonal sem a mínima suspeita de esforço". Para breve, anuncia-se um álbum integralmente dedicado ao repertório pucciniano e uma incursão na música sacra. Mas aquilo que marca em definitivo a obra de Bocelli é uma assumida pertença ao intrincado mundo do "show bizz", às grandes galas na Sala Oval da Casa Branca a convite de Bill Clinton e às noites de todos os óscares ao lado de Celine Dion. O mundo pop é a sua salvação na mesma medida em que a tradição operática é a sua caução. Bocelli não conquistou o mundo a expensas do "Rigoletto" verdiano, mas com um dueto com Sarah Brightman em "Con te partiro", a versão italiana de "Time to say goodbye". Afinal, um tema que à imagem do conjunto dos seus álbuns de inéditos se demarca dos cânones tradicionais sobre os quais se funda o conceito de "música clássica", para se aproximar, rítmica e melodicamente, do formato da canção pop. É por isso que Bocelli se demarca dos seus antecessores logo nos seus princípios. É verdade que Pavarotti já gravou com os U2 e com demais "amigos", mas nunca como no caso do tenor toscano o esbatimento das fronteiras históricas entre o erudito e o popular havia sido levado tão a peito. Os cultores de ambos os extremos preferem designá-lo por "estado intermédio", escapando assim a eventuais conotações objectivas que no seu entender manchariam o bom nome das causas por si defendidas. Para eles, Bocelli não faz ópera nem faz pop - faz "pópera". Pelo contrário, numa alusão à cegueira do tenor italiano, os seus admiradores afirmam que Bocelli tem os olhos na boca - ele não é visionário, mas "vozionário". Indiferente às tácticas de guerrilha, Bocelli tem o condão de se mover com um à vontade olímpico neste intrincado jogo de fusões e confusões. Os seus três principais álbuns de inéditos, "Bocelli", "Romanza" e "Sogno", venderam cerca de 23 milhões de discos em todo o mundo, tornando-o no segundo artista que mais vende na actualidade e transformando-o na mais recente fábrica dos sonhos da indústria fonográfica. Em Portugal, como no resto do mundo, Bocelli é rei e senhor. "Sogno", o seu último álbum, está comodamente instalado no primeiro lugar do top nacional de vendas desde o primeiro dia em que foi editado. Ele é o motivo maior do regresso do tenor italiano a Portugal. Para duas noites na pópera.

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