Por detrás dos palcos shakespeareanos
"Tenho 40 anos, estou mais velho e tenho vontade de rir". O encenador e dramaturgo Neil Bartlett é um apaixonado pela comédia e sobretudo pelos clássicos franceses, Molière, Racine e Marivaux. Deste último, estreia agora "A Disputa", uma peça tão surpreendente quanto perversa, cheia de humor, erótica e cruel, sobre a descoberta do pecado. Uma obra-prima do século XVIII vista por um encenador iconoclasta.
"Isto são pilas de burro para os Contos de Ovídio", diz Lockwood. Imagine-se um inglês de meia idade, com o seu ar "britishamente" irónico, no meio de um desarrumado atelier de adereços de um grande teatro, a falar para uns portugueses curiosos, jornalistas por acaso. Uma cena destas, em Inglaterra e sobretudo nos bastidores da Royal Shakespeare Company (RSC), em Statford-upon-Avon, só podia dar num autêntico "sketch" de comédia.William Lockwood irrompe por essa sala de adereços, com uns objectos fálicos na mão e um cinto de castidade à cintura, o cinto que vai ser utilizado no "Volpone" de Ben Jonhson, peça que a RSC vai estrear brevemente, e diz: "Agora estamos a fazer pilas de burro para os 'Contos de Ovídio' e também mamas. Temos tido, aliás, muita procura de mamas e de pilas."A seguir, desaparece e surge com um caveira na mão: "Esta caveira tem o crânio aberto e vai servir no banquete do 'Volpone'. É para os actores comerem os doces, mas para parecer que estão a comer miolos". E desaparece outra vez, a rir-se, como se saísse de um palco.William Lockwood é o chefe dos aderecistas do Royal Shakespeare Company, para onde entrou há 44 anos, ainda como paquete. Trabalha no ramo desde 1965. Sobre as suas ordens trabalham três jovens aderecistas, quatro marceneiros-chefes e um aprendiz. Sharon, uma dessas jovens, prepara uma cabeça de porco também para o "Volpone", enquanto as suas colegas fazem falsas cebolas e maçãs ou se dedicam à tarefa minuciosa de escrever um diário em fibra de vidro e gaze, caligrafado a preceito, para se parecer com um livro da época shakespeareana. "É um trabalho de artesão de que gosto muito, bastante criativo", diz Sharon.Os armazéns e os bastidores das três salas da RSC, em Stratford-upon-Avon, são uma pequena Hollywood: fabricam-se adereços de toda a espécie, constroem-se cenários, inventam-se guarda-roupas luxuosos, ensaia-se. Uma azáfama diária de 600 pessoas, carpinteiros, armeiros, electricistas, marceneiros, latoeiros, aderecistas, costureiras, designers, arquitectos, mecânicos, para além das duas centenas e meia de actores, 100 em Londres, 100 em Stratford e 50 em itinerância.O grande estaleiro, logo à saída de Stratford, onde trabalha Lockwood, é um mundo fantástico. Ali se constroem algumas das melhores maravilhas do mundo do espectáculo, um trabalho árduo de uma "fábrica" que conta com um suporte financeiro estatal de dois milhões de contos para a realização de oito peças para repertório permanente, ou seja sete performances por dia. Ali trabalha-se com afinco na construção simultânea de cenários e adereços para "Midsummer Night", "Othelo" e "Orenoco", "Volpone" e "Contos de Ovídio". Estes adereços e todos os elementos de palco são depois guardados em enormes caves de dois pisos. É toda a história da RSC que ali está guardada e muito dessa história passa pela memória do chefe William Lockwood. São esqueletos, cadeiras, canhões, sarcófagos, candelabros, livros, roupas, lanças, arcas, bóias, copos, bonecas, armaduras e figuras animalescas de toda a espécie, com especial destaque para ursos, crocodilos e dragões."Este dragão, o urso e aquele sarcófago pertenceram ao espectáculo 'Três Horas Depois do Casamento', da autoria de John Gay, Alexander Pope e John Arbuthnot (1717), e foi um sucesso há dois anos em Inglaterra. Tinha mais de mil adereços. Aquela enorme vespa, por exemplo, pertenceu à 'Fera Amansada' e a outra que está ao lado...", salienta Lockwood.Foi Caro Mackay, a directora de "touring", que acompanhou o PÚBLICO numa visita aos bastidores deste mundo fantástico. "Depois vamos ver o guarda-roupa. Não sabem, mas foi a RSC que forneceu os fatos para o filme 'A Paixão de Shakespeare' e estamos orgulhosos disso", afirmou. Caro Mckay acrescentou que não é fácil gerir aquela máquina, mas a experiência acumulada permite fazer milagres. Depois de uma passagem pela alfaiataria, chapelaria, joalharia, sapataria, tinturaria e marroquinaria, salas que pertencem aos bastidores dos Swann Theatre (700 lugares, todo em madeira, com um ambiente familiar) e ao Royal Shakespeare Theatre (1500 lugares) e onde se manufacturam pequenas e grande preciosidades, foi tempo para ver uma exposição do riquíssimo guarda-roupa shakespeareano. Lá estavam, por exemplo, os fatos que Vivien Leigh e Lawrence Olivier usaram em "Lady Macbeth" no ano de 1955 ou o de Jeremy Irons em "Richard II" no ano de 1986. A somar a isto podiam observar-se diversos objectos que pertenceram ao próprio William Shakespeare. Caro Mackay sublinhou que é impossível ensaiar em Stratford porque está sempre uma peça em cena. Os ensaios são em Londres, no Barbican Theatre, e o elenco vem uma ou duas semanas antes da estreia para Stratford. Para Londres, destes adereços todos, vão apenas os elementos de palco essenciais aos ensaios.Cada actor faz três papéis ao mesmo tempo, estando em palco quase sempre à tarde e à noite, em espectáculos diferentes, durante as "tournées". Cada estação artística, a do Verão e a do Inverno ( "Summer Season" e "Winter Season"), abre com seis peças, duas em cada sala, mas em cena estão normalmente quatro shakespeares, quatro clássicos de autores diferentes e dois novos. Os contratos dos actores são feitos por 60 semanas e ganham um salário médio de 120 contos por semana, o que para o nível de vida da Grã-Bretanha é muito pouco."Os actores gostam de estar a trabalhar em várias peças ao mesmo tempo porque isso lhe dá uma energia acrescida, mas reconheço que não ganham por aí além.", disse Caro Mackay. A RSC, cujo nome foi escolhido em 1961, é a mais conhecida companhia de teatro do mundo. Mas a sua história remonta a 1875, ano em que Charles Edward Flower, um cervejeiro de Strattford-upon-Avon, lançou uma campanha para a construção de um teatro na cidade de Shakespeare. Quatro anos depois nasce o Shakespeare Memorial Theatre, um teatro vitoriano ao estilo gótico para 800 lugares cuja primeiro espectáculo a estrear foi "Much Ado About Nothing". Na altura, a época teatral estava limitada a três semanas durante a Primavera e a um mês no Verão. O grande impulso do que é hoje a RSC deve-se a Peter Hall, o autor do celebérrimo espectáculo "Guerra das Rosas" e outros directores como John Barton, Terry Hands, Trevor Numm ou Clifford Williams, em cuja direcção surgiram grandes actores e autores. A RSC é dirigida, desde 1991, por Adrian Noble.