Licença tardia para dez vítimas
Um incêndio provocou ontem a morte a oito idosos de um lar em Mem Martins, concelho de Sintra. Outros dois utentes ficaram gravemente feridos e mais dez passaram a noite no quartel dos bombeiros. O pesadelo poderá ter tido origem numa deficiência eléctrica, mas o facto de o estabelecimento não possuir licença, ainda pendente de vistorias da câmara e dos bombeiros, também poderá ter ajudado.
O Lar Coração de Maria, em Mem Martins, onde um incêndio provocou ontem a morte a oito idosos e ferimentos graves em mais dois, estava a funcionar sem alvará, encontrando-se a decorrer o respectivo processo de licenciamento. A aprovação do pedido de licença estava dependente, segundo uma fonte da Secretaria de Estado da Inserção Social, de pareceres da Câmara de Sintra e dos bombeiros.Foi cerca das 0h43 que os bombeiros de Algueirão-Mem Martins receberam uma chamada para acudirem a um incêndio no Lar Coração de Maria. Em poucos minutos chegaram junto da vivenda que servia de habitação para as duas dezenas de idosos, mas já pouco puderam fazer. Metade dos idosos ocupava vários quartos no rés-do-chão e os restantes, entre os quais alguns acamados, repartiam-se pelos quartos do piso superior, numa espécie de águas-furtadas.As chamas deflagraram na sala de convívio, existente ao cimo das escadas para o piso de cima, e junto ao corredor que dá acesso aos vários quartos. De acordo com o comandante dos voluntários locais, Manuel Sousa, o sinistro terá tido origem "numa sobrecarga dos circuitos eléctricos junto de uma televisão", que funcionava na sala de convívio. No entanto, esta suspeita terá ainda que ser validada por investigações posteriores, a realizar pelas autoridades policiais e pela Inspecção Superior de Bombeiros.As labaredas propagaram-se rapidamente ao revestimento interior da vivenda, em madeira e esferovite, provocando um fumo intenso. Das 10 pessoas que ocupavam o andar de cima, apenas duas sofreram queimaduras. As restantes morreram intoxicadas pelo fumo nos próprios quartos. Os bombeiros só conseguiram chegar ao local onde se encontravam as vítimas após combaterem as chamas na sala de convívio. Isto porque o único acesso aos quartos era precisamente pelas escadas, de reduzidas dimensões, e pela sala de convívio, já que todas as janelas da vivenda se encontravam vedadas com grades."Transformaram aquilo num presídio. Estou convencido de que as grades, neste caso, não intervieram directamente com as mortes, mas o que é um facto é que os bombeiros não puderam usar as janelas para entrar e tiveram que subir por onde estava o fogo", comentou o presidente do Serviço Nacional de Protecção Civil, António Nunes. Segundo este responsável, o lar possuía dois extintores e um diagrama dos quartos devidamente afixado, mas os eventuais "canais de evacuação [as janelas] estavam tapados". Por isso, notou, "se houvesse uma fiscalização preventiva aquilo não tinha acontecido".Uma vigilante do lar, Mariana Esteves, 50 anos, justificou a presença das grades com razões de segurança contra intrusos e para evitar que alguns dos idosos pudessem "tentar alguma coisa". A mesma funcionária garantiu que, quando trocou de turno com outra colega, pela meia noite, estava tudo bem: "Os velhotes estavam a dormir e não cheirava a queimado". As condições do lar também não lhe mereceram reparos, embora reconhecesse que, no piso de cima, havia um quarto "que não tinha luz e a campainha [de emergência] estava avariada". Quanto ao resto, assegurou, "eram todos tratados com carinho".Quem não está convencido disso é Carlos Ferreira, filho de uma sobrevivente do incêndio. Entre as suas críticas ao funcionamento da casa estão as queimaduras nos braços com água quente que a sua mãe sofreu em 28 de Fevereiro último. Carlos Ferreira acusou, através da RTP, os responsáveis do lar por terem deixado a sua mãe sem assistência médica "até ao dia 4 de Março". Em resposta às queixas que apresentou às entidades oficiais, disse, apenas recebeu uma carta informando que o Centro Regional da Segurança Social está a acompanhar o assunto.Além dos oito mortos, os bombeiros transportaram para o Hospital Fernando Fonseca (Amadora-Sintra) mais três feridos. Um deles teve alta pouco depois, mas os outros dois tiveram de ser transferidos para o Hospital de São José, em Lisboa. Ao final da tarde, o estado de ambos era "crítico", segundo um dos responsáveis pela Unidade de Queimados, António Gomes Silva. Os dois homens, um de 54 anos e outro de 76, apresentavam queimaduras na faringe, na traqueia e nos brônquios e suspeitava-se que também tivessem os pulmões afectados."Estiveram demasiado tempo encerrados num ambiente fechado, com muito calor", explicou o médico. "Encontram-se ligados a ventiladores e estão muito mal", acrescentou o clínico. Mesmo que sobrevivam aos próximos quatro ou cinco dias, não é certo que se salvem, devido à gravidade das lesões provocadas pelas queimaduras. Um factor que pode ter pesado negativamente na evolução do estado dos dois homens foi a falta de informações, no hospital, sobre o seu passado clínico. Suspeitava-se ontem de que um deles poderia ser diabético.Os sobreviventes passaram a noite no quartel dos bombeiros de Algueirão-Mem Martins. Ali foram visitados pelo ministro da Solidariedade Social, Ferro Rodrigues, pelo secretário de Estado-adjunto do ministro da Administração Interna , Armando Vara, e pela presidente da Câmara de Sintra, Edite Estrela (ver reacções nestas páginas). Perto das 6h45, os 10 idosos seriam transferidos para o Lar da Quinta do Oitão, em São Pedro de Penaferrim, propriedade do Centro Regional da Segurança Social e gerido pela Fundação António Leal Silva."Eles queixavam-se principalmente de muito fumo, muito fumo", contou a directora da Quinta do Oitão, Susana Branco, que se escusou a facilitar o contacto do PÚBLICO com qualquer dos sobreviventes, por estes estarem "a descansar". Todavia a estação de televisão SIC teve acesso a um dos sobreviventes acolhido no lar da Segurança Social, que contou ter-se apercebido das luzes a apagarem-se, ter ouvido um estrondo e ter ouvido os bombeiros a gritar. O Lar Coração de Maria, acusou, tinha "más condições".As famílias de dois dos sobreviventes já ontem tinham assegurado a sua transferência, na segunda-feira, para outras instituições. Os restantes ficarão entregues aos cuidados do lar de São Pedro, que ontem viveu um corropio excepcional, também por parte das famílias dos idosos que já ali se encontravam. "Ela está bem disposta", descreveu Laurinda Alves, após visitar a mãe, Maria dos Prazeres, 75 anos, que viveu os últimos cinco anos no Coração de Maria. A filha mostrou-se convencida de que a mãe e o pai, este falecido há duas semanas, eram bem tratados no lar de Mem Martins, e negou ter conhecimento de falta de limpeza ou maus tratos.Entretanto, segundo uma fonte da Secretaria de Estado da Inserção Social, o lar apresentou em Dezembro de 1998 um pedido de licenciamento ao abrigo das novas normas de funcionamento deste tipo de estabelecimentos. Embora haja no processo alguns elementos fornecidos pelos bombeiros, o mesmo informador acrescentou que a autorização ainda não foi dada "porque faltam pareceres de vistorias dos bombeiros e da câmara municipal". Por seu lado, a associação que representa os proprietários de lares de idosos comunicou que o Coração de Maria funciona como lar desde 1976, e que à semelhança de 90 por cento dos lares do país, aguarda o licenciamento, funcionando com um "certificado de segurança dos bombeiros".Questionado acerca do processo existente na Segurança Social, o segundo comandante dos voluntários de Algueirão-Mem Martins, César António, admitiu que possa ter existido "uma consulta" à sua corporação, mas salientou que "em circunstância alguma pode haver um parecer positivo dos bombeiros" ao Coração de Maria. E concluiu: "Formalmente não deu entrada qualquer pedido de vistoria". O proprietário, Salim Talik Ibrahimo Ossam, que o PÚBLICO não conseguiu contactar, possui um outro lar em Loures. Segundo uma empregada encontrava-se ausente.As oito vítimas mortais do incêndio no Lar Coração de Maria são: Rosinda Garradas e Silva, 60 anos, natural de Venteira; António Dias Ribeiro, 77 anos, casado, natural de Mação (Abrantes); Susana Palmira Correia, 82 anos, viúva, natural de Montelavar; Hermínia Rita de Deus Gonçalves, 86 anos, viúva, natural de Lisboa; Diamantino Bucho Cristóvão, viúvo; Augusto Tiago Belmonte Gravito, casado; Maria José Barata Eugénio, viúva, natural de Lisboa; Maria Lurdes Rodrigues Maurício, natural de Lisboa.*com Ana Henriques