NATO lamenta "erro trágico"

Noite terrível. Depois de poupar a capital durante três dias, a NATO concentrou a sua força em Belgrado. Alguns alvos já são vício. Mas houve um engano desastroso: a embaixada da China foi destruída. Os diplomatas costumam dormir a essa hora. A Aliança admite que falhou - talvez um erro de computador - mas vai continuar a bombardear. Bill Clinton lamenta o "erro trágico", mas Beijing não desculpa o que classificou de "crime de guerra".

Mísseis voando baixinho, explosões em pleno coração da cidade, "black out" e cortes no abastecimento de água, edifícios em chamas, descargas antiaéreas e horas seguidas de angústia foram os ingredientes da pior das 45 noites de bombardeamentos sobre Belgrado. Alguns alvos foram repetidos, outros eram previsíveis, mas um ninguém esperava: três mísseis da NATO aterraram em cheio na embaixada da China, provocando vítimas - além da ira de Beijing e uma crise diplomática imprevisível.[De visita a Del City, região do Oklahoma devastada pelos tornados da semana passada, o Presidente Bill Clinton, lamentou ontem "sinceramente" o bombardeamento "acidental" da embaixada chinesa, que qualificou como "erro trágico". No entanto, mostrou-se convencido de que "a NATO deve continuar a sua missão".Em Bruxelas, o secretário-geral da NATO, Javier Solana, usou a mesma expressão de Clinton - "um erro trágico" - e prometeu um "inquérito urgente" para explicar por que é que os pilotos confundiram a Direcção Federal de Armamento, que era o alvo pretendido, com uma missão diplomática. Solana garantiu que a via diplomática "continua aberta e em movimento" mas reafirmou também que a Aliança não tenciona suspender a campanha aérea. Em Bona, o ministro alemão da Defesa, Rudolf Scharping, tentou justificar a destruição da embaixada com "um erro de computador", mas os peritos militares ainda não sabem bem o que aconteceu - e se pode acontecer de novo.Em Nova Iorque, onde o Conselho de Segurança das Nações Unidas se reuniu de emergência, a China acusou a NATO e os EUA de terem praticado "um crime de guerra" pelo qual "devem ser plenamente responsabilizados" e para o qual não aceita justificações. Os países membros do Conselho exprimiram consternação e condolências ao Governo de Beijing, mas a resolução que aprovaram não é vinculativa, e não condena o ataque como "uma violação flagrante do direito internacional" nem recomenda uma investigação pela ONU, como os chineses queriam.]De sexta para sábado, a NATO realizou mais de 600 saídas e Belgrado colheu as atenções da maior parte dos aviões aliados. Nas três noites anteriores, a cidade tinha vivido uma relativa acalmia, que deixava muitos habitantes nervosos de suspeita: "Quando voltarem de novo os ataques, serão ainda com mais força", comentava na véspera um assistente universitário que vive junto a antenas de retransmissão da televisão sérvia.O primeiro ataque anteontem à noite aconteceu à hora "marcada", 22h00, que começa a ser fatídica para a população da cidade. Domingo à noite, foi exactamente a essa hora que um ataque aéreo com bombas de grafite da uma central elétrica deixou pela primeira vez a capital e a maior parte da Sérvia às escuras.Desta vez, o ataque chegou da mesma forma mas foi mais metódico. Várias explosões iluminaram o horizonte de Nova Belgrado, a parte moderna da capital nas margens Oeste dos rios Danúbio e Sava. Os primeiros alvos foram duas das maiores centrais de energia da Jugoslávia, Obrenovac (a cerca de 20 quilómetros a Sudoeste do centro) e Kolubara (50 quilómetros na mesma direcção).Belgrado ficou totalmente às escuras porque a NATO bombardeou, em simultâneo, três transformadores essenciais para a capital, nos subúrbios de Resnik, Lestane e Bezanija. No escuro, foi possível assistir e sentir mais próximos os raides aéreos, a série de ataques a vários edifícios governamentais e militares em plena baixa.Cena particularmente insólita, num local onde as pessoas se habituaram a conviver com o perigo, foi ver os clientes de um quiosque de "fast food", aberto toda a noite, espalhados, com os seus cães, pelo chão da rua Balkanska, depois de um míssil passar a assobiar por cima deles e cair a apenas três quarteirões. O escuro da cidade deu também uma nitidez fotográfica à furiosa disputa das baterias anti-aéreas jugoslavas com os aviões aliados - à volta da meia-noite, quando ainda havia nuvens que reflectiam as irupções de amarelos e vermelhos das armas e dos incêndios e separavam o som cavo das baterias do estrondo invisível dos bombardeiros.O ataque à embaixada da China, numa transversal do "boulevard" de Lenine, aconteceu antes da uma da madrugada. Uma série de três explosões deixou a fachada Sul do volumoso edifício destruída. Terá sido por esse lado que entraram os projécteis; lá dentro dormiam cerca de 30 pessoas, incluindo pessoal diplomático. Três pessoas morreram, entre elas uma jornalista da agência Nova China, e dezena e meia ficaram feridas.Na confusão que se seguiu - bombeiros, polícias, vizinhos, membros anónimos da comunidade chinesa na Sérvia, jornalistas, todos misturados numa nuvem de caliça que os projectores das câmaras de televisão tornavam fantasmagórica -, a maior interrogação era: porquê bombardear uma embaixada, ainda por cima a da China? Vários cidadãos chineses, com os pés mergulhados na água das bocas de incêndio, olhavam, atónitos, para a mistura de fuligem e vidros partidos em que ficou a embaixada, enquanto as equipas de socorro tiravam corpos (mortos, feridos, vivos) por escadas-magirus. Alguns dos sobreviventes saíram pelo seu pé, como um diplomata quase em estado de choque mas suficientemente lúcido para mostrar a sua indignação, com a cara mascarrada e os óculos cobertos de uma pasta preta.Para um alvo absurdo, surgiam explicações absurdas: "Só pode ser por causa daquelas antenas. Talvez eles tivessem uma estação de rádio lá dentro para o nosso Exército utilizar", avançava Dragan, um dos mirones que habita num bloco residencial próximo e que desceu aos destroços da embaixada depois das explosões lhe terem estilhaçado todos os vidros do apartamento."Obviamente, a NATO sabia o que estava a bombardear e fê-lo para, ao mesmo tempo, provar e testar até pode ir nesta guerra", ponderava horas depois do ataque a responsável de um dos principais hospitais de Belgrado. "A seguir vai ser a embaixada da Grécia. É a minha aposta..." Outros repararam que o engano podia ter sido ainda pior: imaginemos a embaixada da Rússia.Vários notáveis apareceram no local pouco depois do bombardeamento, incluindo vários membros do Governo - como o ministro dos Negócios Estrangeiros jugoslavo, Zivadin Joeanovic - que prestaram declarações iradas em frente à placa da embaixada no portão principal. No local irrompeu também o comandante Zeljko Raznatovic, Arkan, acusado de crimes de guerra pelo Tribunal Penal Internacional de Haia e chefe dos temíveis paramilitares Tigres Sérvios.A pequena multidão que assistia ao rescaldo da embaixada da China foi, pouco depois, presenteada com um novo ataque a menos de 500 metros. A NATO atingiu o Hotel Jugoslávia, uma unidade de luxo à beira-rio. Segundo a Aliança, o hotel está a ser usado como quartel-general dos Tigres de Arkan. Não houve vítimas (hóspedes ou Tigres) porque o bloco principal do hotel não foi atingido.Na outra margem, entretanto, continuava o caos, com as luzes azuis das ambulâncias e dos carros de polícia cruzando em ambos os sentidos as pontes do Sava, como vaga-lumes a grande velocidade. Sucessivos ataques foram realizados sobre objectivos queridos à NATO, como a sede das formas armadas jugoslavas e o ministério do Interior federal (ambos os edifícios estão destruídos e vazios há semanas).Um pouco a Sul, junto à Ponte Gazela, a Aliança deu o baptismo de fogo à Feira Industrial de Belgrado, um conjunto de elegantes estruturas de vidro e cúpulas de cimento levitando à beira do Sava que já foi o maior centro de exposições da Europa. Esteve em chamas durante três horas. Mais a Leste, os aviões insistiram em atingir o subterrâneo de um edfício que funcionou como residência do Presidente Milosevic e que, segundo Bruxelas, é agora o centro de comando do Exército.Com a manhã, a cidade descansou o possível, uma vez que faltava água e luz na maior parte da capital. Foi uma noite violenta e bizarra: às três da manhã, depois do estrondo da embaixada da China e do Hotel Jugoslávia, quem estivesse na área podia quase tocar os três mísseis que, vindos de Oeste, subiram o enorme "boulevard" de Lenine, arrastando três silvos iguais a nenhum outro som, para atravessar o rio e cair em cheio no coração de Belgrado.

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