Torne-se perito

Droga: antes crime, agora doença

A droga já não é o que era em Portugal. A juventude desconfia dela. Tornou-se num fenómeno geracional e num problema de saúde pública. O olhar da classe política sobre este fenómeno também começa a mudar. Cada vez mais a toxicodependência é considerada como uma doença. E em preparação estão alterações à lei que assumirão o toxicodependente como doente, acabando com a criminalização do consumo, sem pôr em causa o proibicionismo. O Governo prepara-se para avançar a título simbólico já antes das legislativas e se ganhar as eleições voltará à carga, centralizando a coordenação num ministério novo. O PCP e "Os Verdes" estão receptivos às mudanças. O PSD tem dúvidas. O PP está contra. Assim, se votação fosse hoje, consumir droga deixava de ser crime.

O Governo prepara-se para aprovar em Conselho de Ministros uma proposta de lei para rever a lei de combate à droga que descriminaliza o seu consumo. O texto, que está a ser elaborado pelo penalista Faria da Costa, deverá seguir para a Assembleia da República ainda antes das legislativas de Outubro, apesar de já não haver tempo útil para a sua discussão e votação.Este gesto funcionará, contudo, como símbolo do carácter prioritário que o executivo de Guterres dá a este assunto, sendo certo que a reordenação do quadro de combate à droga será uma das primeiras medidas do PS caso venha a vencer as eleições de Outubro. Foi esse espírito que levou o executivo a aprovar uma nova "estratégia nacional de luta contra a droga", que amanhã será apresentada pelo ministro José Sócrates ao Conselho Nacional de Toxicodependência.Uma mudança de estratégia sobre a qual o PSD tem dúvidas e a que o PP se opõe, mas que já foi defendida, sem êxito, pelo PCP na revisão da lei efectuada em 1996. Só que, passados dois anos, os socialistas concluem que o actual quadro de combate não é eficaz, além de que a droga é uma doença, e como tal tem de ser encarada em termos sociais.A alteração de posição do PS surge num momento em que que o quadro social do consumo de drogas está em mutação. Consumir drogas já não se apresenta como um comportamento apetecível para a juventude e a toxicodependência parece ser cada vez mais um problema geracional dos mais velhos - os que têm 30, 35 anos - e de saúde pública. Por outro lado, tem sido crescente a abertura à descriminalização por parte da classe política e das figuras de Estado ao mais alto nível: o presidente da Assembleia da República, Almeida Santos, é seu partidário, assim como o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Cardona Ferreira.O clima político mudou mesmo ao ponto de no grupo parlamentar do PS não ter criado escândalo a elaboração de um projecto de recomendação da Assembleia ao Governo para despenalizar o consumo de drogas da autoria de Eurico de Figueiredo. Este socialista, que se caracteriza a si mesmo como "pioneiro da regulamentação" da toxicodependência, conseguiu ver o seu ante-projecto discutido pela bancada, embora o texto nunca tenha dado entrada na Mesa da Assembleia.As novas concepções de combate à toxicodependência baseiam-se no princípio de que o toxicodependente é um doente e não um criminoso. Daí a ideia de descriminalizar o consumo, ou seja, de terminar com a punição do uso de drogas através de penas de prisão e a sua transformação em procedimento e sanção administrativa, susbtituível por tratamento voluntário.Isto porque "o Estado tem de combater a doença, não os doentes", como assumiu ao PÚBLICO o ministro-adjunto José Sócrates. O ministro sublinhou que a intenção do Governo não é a de que o consumo de drogas deixe de ser considerado ilícito e por isso proibido. Ou seja, em causa não está a liberalização ou a legalização do uso de drogas, tão-só retirar esta questão do quadro penal e criminal e combater o problema deixando "para trás ideias baseadas no medo e no dogma".Sócrates assume que "o Governo vai manter o proibicionismo" até porque está convencido de que liberalizar o consumo levaria ao seu crescimento, pois "tornaria mais fácil o acesso às drogas". Mas o ministro condena também a despenalização por outros motivos: "seria um mau sinal para a sociedade, uma vez que não ficaria na lei nenhum conceito de desvalor, prejudicaria o combate ao tráfico e Portugal teria de sair fora do direito público internacional e denunciar acordos como o de Schengen".A opção pela descriminalização surge também da constatação pelo Governo de que a prisão não recupera o toxicodependente. "Este fica com uma chancela que não ajuda em nada à sua reinserção", defende Sócrates. A alternativa é encaminhar administrativa e não penalmente os dependentes de drogas para o Serviço Nacional de Saúde. O Governo pretende também alterar o quadro legal de punição penal do consumidor-traficante. O objectivo é ultrapassar aquilo que consideram como uma falha na lei actual, que vê o traficante-consumidor apenas como aquele que investe o produto do tráfico para a compra de drogas que consome. "Pretendemos que seja considerado também o produto da venda que é investido na satisfação de necessidades básicas", afirma o ministro que acrescenta: "Actualmente, se se provar que o pequeno traficante consumidor jantou com o dinheiro, fica logo classificado apenas como traficante e é punido, por exemplo, com seis anos, o que é dar cabo das suas hipóteses de recuperação e inserção social."A situação do consumidor-traficante é também uma preocupação do presidente da comissão parlamentar para a toxicodependência, o deputado do PCP António Filipe. A moldura penal para estes casos é, na sua opinião, "demasiado restritiva", uma vez que "se ele comprar uma sandes é considerado traficante, se comprar só droga é visto como consumidor-traficante".António Filipe considera "que há uma evolução positiva da parte do PS" nesta matéria e uma aproximação às posições anteriormente defendidas pelo PCP. E defende que "quando se reconhece que a toxicodependência é doença deve-se tirar consequências" e a principal, garante, "é a de que uma doença se trata por uma terapêutica adequada e não passa pela prisão". Mas António Filipe alerta que "não basta substituir o procedimento penal por uma mera aplicação de uma sanção administrativa, uma coima, por que a ser assim a medida resultaria apenas no alívio dos tribunais e não resolveria o problema da toxicodependência".

Sugerir correcção