Paz, pão e teatro
Um autor de policiais sueco ouviu a profecia à porta de um teatro de Maputo - "Um dia vou conseguir!" - e escreveu uma peça sobre uma menina que queria ser estrela. "Nas Teias de Maputo" virá a Portugal no próximo mês. A estreia é esta noite, no palco do Teatro Avenida, na capital moçambicana. À porta do edifício continua a vender-se pão.
Rita está farta de vender amendoins nas ruas de Maputo. Tem um sonho: ser estrela. O pai e o irmão desdenham-lhe as qualidades de cantora, mas Rita foge de casa. Conhece Roberto, um carpinteiro que por ela logo se apaixona, cai nas mãos de um empresário que teima em fazer infelizes os seus artistas e uma vagabunda que em tempos teve o mesmo sonho que ela. É assim "Nas Teias de Maputo", a peça que o grupo moçambicano Mutumbela Gogo estreia esta noite no Teatro Avenida, a poucos metros da Feira Popular, em Maputo, a história da luta de uma menina para realizar o seu sonho e a amarga descoberta de "como o comercialismo pode destruir um sonho, se não estivermos atentos", como explica o autor do texto e encenador Henning Mankell no folheto de apresentação da peça. "Uma história dentro de milhares de histórias escondidas nas janelas de Maputo, aguardando o momento de serem contadas", continua. Uma delas é a história de Rita, que chega a Portugal no próximo dia 19 de Junho, para tomar parte nos Círculos Internacionais de Teatro de Aveiro, passando por Tondela, Viseu, Porto e Lisboa. Um pretexto para o PÚBLICO falar com a produtora do grupo, Manuela Soeiro, no seu local de trabalho - um escritório exíguo onde as máscaras saídas do engenho dos artesãos macondes se alinham junto aos autocolantes azuis povoados de golfinhos amarelos da Expo'98, e os convites para a estreia de "Nas Teias de Maputo" ladeiam pequenas folhas de um bloco de notas com apontamentos sobre a quantidade de fermento a encomendar. Fermento? Nada de estranho num grupo de teatro pouco convencional: no rés-do-chão do Teatro Avenida, junto à bilheteira, há uma pequena padaria, a "Txhapo Txhapo", alicerce financeiro imprescindível num tempo em que as receitas trazidas pela venda de bilhetes mal davam para pagar os adereços: "A padaria foi o nosso meio de sobrevivência numa altura em que se deu uma reforma económica no país. Houve uma desvalorização do metical [moeda nacional], subiu o preço de tudo e nós não tínhamos qualquer meio, já que o Estado não nos podia apoiar. Pensámos: 'O que é que as pessoas compram todos os dias? Pão!'", lembra Manuela Soeiro, 53 anos. "A padaria ajudou bastante. Mas agora o grupo já está noutra fase. Temos outros mecanismos de sobrevivência: uma produtora de vídeo, fazemos filmes, as nossas peças também vendem um bocadinho - não muito - , montamos cenografias para grandes espectáculos..." Estende um cartão de visita onde se lê "Manuela Soeiro, Avenida Produções: Produtora de Teatro, Filme, Vídeo e Publicidade". Só em 1998, o grupo produziu a peça "Que Dia!", trazido à Expo'98 em Junho do ano passado, para além do musical "Irmãos de Sangue" de Willy Ressel, uma encenação de Eva Bergman nascida da ligação do Mutumbela Gogo com o Backa-Theater de Gotemburgo, na Suécia. O currículo inclui ainda dois filmes, "O Sucessor" e "Comédia Infantil", este último realizado por Solveig Nordlund, a partir do livro de Henning Mankell, "Os Meninos de Ninguém" (edição portuguesa na Asa), e a parceria que o grupo moçambicano mantém com vários congéneres de países como Índia, China, Itália e Suécia, no âmbito do programa "The World Theatre Project", apoiado pela Unesco. Mas a história do Mutumbela Gogo conta já 15 anos, mais nove se se quiser recuar até 1975, altura em que Manuela Soeiro, então professora de educação física, começou a trabalhar com grupos de teatro amador dos bairros periféricos de Maputo, ao mesmo tempo que Moçambique descobria o teatro. O seu teatro. "Antes da independência havia teatro feito por grupos que vinham de Portugal. Não tinha nenhuma conotação africana, não tinha nada a ver connosco, ninguém vinha ver esse teatro", diz Manuela Soeiro. Foi preciso esperar até 1986 para que nascesse o Mutumbela Gogo, o primeiro grupo de teatro profissional de Moçambique. "Eu quis fazer uma opção na minha vida, que foi vir para o teatro numa altura em que não era possível estar à frente de uma coisa dessas porque se tinha implantado o socialismo. Era uma ideia capitalista fazer teatro profissional, lembro-me que fui conotada como uma grande capitalista", recorda a fundadora do grupo. A prova de que a rendição à economia de mercado estava longe dos seus planos são os projectos de educação para a paz que os elementos do Mutumbela Gogo têm levado a cabo desde então. Exemplos? Quando ocorreram as primeiras eleições democráticas em Moçambique, em 1994, o grupo lançava o projecto "Moçambiquero-te" e levava a peça "Vestir a Terra" ao palco do Teatro Avenida, um emocionante retrato do regresso a casa dos refugiados da guerra civil que alastrou pelo território ao longo de 15 anos. Depois, foi só traduzir a peça escrita em português para as dez línguas nacionais e repartir os vários elementos do grupo pelas províncias do país, para que "Vestir a Terra" fosse reconstituída pelas companhias de teatro locais. Ao abrigo do mesmo projecto, o grupo passou a última semana numa campanha de sensibilização para a desminagem do território moçambicano, apresentando uma série de pequenos "sketches" à volta do tema. "O nosso teatro tem a ver com a nossa vida aqui", resume Manuela Soeiro, antes do largo sorriso que acompanhará uma pergunta retórica: "Aliás, o início do teatro foi assim, não é?"