A pintura habitável de Jimmie Durham
É uma arte feita para podermos viver nela: paisagem marítima com barco vermelho, pedras coloridas, paus, um cartaz de boas vindas, o Palomar de Calvino. Para ver no Museu do Chiado, oscilando entre as palavras e as imagens, na instalação de Jimmie Durham.
De volta a Lisboa depois de em 1995 ter exposto na galeria Módulo, Jimmie Durham prefere que "Interrupções", a peça que criou para o Museu do Chiado, fale por si: para já, não dá entrevistas. O artista plástico norte-americano de origem índia ("cherokee") diz-se cansado de falar sobre a herança étnica que perpassa a sua obra. Passadas quatro décadas desde que começou a expor os seus trabalhos nos Estados Unidos parece querer deixar definitivamente de ser visto sob o prisma de um "artista de minorias", de um activista do movimento dos índios norte-americanos e a contornar o que, numa entrevista, constatou: "Em Nova Iorque e sem dúvida na Europa as pessoas ficaram surpreendidas por eu ser um artista 'a sério', que o meu trabalho não pare nas fronteiras das lutas pela identidade." Ao entrar na sala rectangular e muito branca onde se expõem os trabalhos do projecto "Interferências" - espaço do Chiado dedicado à exibição de obras inéditas de artistas contemporâneos - deparamos com objectos que ferem o olhar, impondo-se individualmente. Os tons ácidos de azul, verde e amarelo sublinham os contornos das formas: ao centro um barco de madeira totalmente vermelho, à direita e à esquerda de quem entra, e ainda ao fundo, montículos de pedras coloridas. Por cima destas pedras, sobressaindo, estão paus pintados de amarelo limão. Só depois, como quando se sai de um ambiente semi obscurecido para a luz, as formas identificadas se vão relacionando e dão lugar a um todo harmonioso: uma paisagem. A de Durham remete para um cenário marítimo ou fluvial. "O trabalho que ele fez aqui foi elaborado a partir de algumas visitas ao museu e, não fazendo uma instalação que seja uma resposta muito directa à colecção do museu, Durham trabalhou a partir de algumas imagens e ideias que lhe ficaram. A pintura por exemplo", explica Pedro Lapa, director do Museu do Chiado. Neste caso, a pintura de paisagem: "Estamos perante uma espécie de pintura habitável, onde podemos entrar. Estas imagens, dentro das quais nós podemos andar, vão confrontar-se com alguns textos". São textos que aparentemente instauram momentos sucessivos de ruptura. Pendurado no tecto, como se fosse um dístico de recepção ao visitante, um cartaz bilingue - em português e porepecha, um dialecto mexicano - opõe, lado a lado, "uakni erakorheri"/jogo que consiste em representar um esquilo voador perseguido por um cão; "uakhani kuishindurhani"/ dançar bem e com ímpeto; "psitukarheni"/ quando alguém perde alguma coisa pessoalmente; "phaneri"/picada; "phameni"/dor; e finalmente "phamengek"/dor de coração antes de morrer. Já dentro da pintura tridimensional, encontra-se poisado no chão, num outro cartaz, um excerto do conto "Leitura de uma Onda", incluída na obra "Palomar", do escritor italiano Italo Calvino. "O mar está levemente encrespado e pequenas ondas vêm bater na costa arenosa. O senhor Palomar encontra-se na praia, de pé, e observa uma onda". Apesar de Palomar estar de férias e de os cenários que o rodeiam se prestarem à contemplação - como a paisagem colorida de Durham - e apesar de não ter qualquer questão de princípio contra a contemplação não é esse o objectivo do personagem. Aquilo que pretende, continua o conto, é "ver uma onda, ou seja, colher todas as componentes sem descurar nenhuma", consciente de que não o pode fazer esquecendo "os aspectos complexos que ocorrem para a sua formação e aqueles outros, igualmente complexos, a que ela dá lugar". Calvino chega a deixar no ar a hipótese de Palomar estar a tentar "apreender a verdadeira substância do mundo, para lá dos hábitos sensoriais e mentais". Mas desconstrói-a: "Que desgraça seria se a imagem que o senhor Palomar conseguiu minuciosamente construir se baralhasse e se quebrasse e se dispersasse". É também uma desconstrução o que os textos parecem provocar na instalação. Afixado na parede que se opõe, ao lado do barco vermelho, um texto escrito pelo artista, atira o leitor para uma nova dimensão - "dá-me uma boa razão para não te matar". Em tom de diário, num estilo fragmentário, o texto regista várias experiências de Durham enquanto trabalhava na peça em Lisboa. O momento em que, em segredo, leu algumas cartas do arquivo do museu - "a Srª Frederick de Nova Iorque agradece a ajuda prestada pelo Museu" - ou dois episódios televisivos: na BBC um general americano afirma que "o arsenal da democracia é profundo" e, num documentário, fala-se da pena capital no Texas. O comité de clemência nunca demonstrou clemência alguma, acrescenta Durham. "O que é verbal aqui é definidamente verbal e o que é visual é assumidamente visual. Estamos perante uma oscilação entre esses blocos de texto e uma imagem", continua Pedro Lapa. E dentro da própria imagem são também sugeridas oscilações. Ao fundo, no canto esquerdo, surge isolada uma mesa. Ainda que recontextualizada, como qualquer dos outros elementos não perdeu a sua própria natureza enquanto objecto, mas, ao contrário destes, não parece fazer parte de um mesmo cenário. "O trabalho do Jimmie tende a contornar a definição absoluta de um sentido para cada objecto que nele se encontra. É por isso que os textos são completamente diferentes do que se encontra aqui. A necessidade de reduzir o elemento visual, o objecto, a um sentido linguístico verbal muito definido é algo que o trabalho de Durham de alguma forma pretende contornar e relegar para segundo plano", afirma Pedro Lapa. "Desloca-se a mesa para outra coisa, como o fazem os textos, como tudo isto também está deslocado do seu próprio espaço".