Filha de Schoenberg, mulher de Nono
O facto de ser filha de compositor, Arnold Schoenberg, e mulher de compositor, Luigi Nono, converteu-se numa profissão. É assim que Nuria Schoenberg-Nono descreve o que tem feito depois de ter tirado um curso de biologia... Em Lisboa, acabou de inaugurar a exposição multimédia "Arnold Schoenberg (1874-1951)", um projecto ambicioso que pretende tornar acessível um compositor controverso que mudaria para sempre o curso da história da música.
Nuria Schoenberg-Nono transporta consigo a história da música do século XX. Uma história que protagonizou nos bastidores. Filha de Arnold Schoenberg - figura tutelar da 2ª Escola de Viena e responsável por uma das mais profundas transformações que alguma vez ocorreram na história da música -, casou em 1955 com o compositor italiano Luigi Nono, personalidade incontornável da criação musical do pós-guerra. Apaixonada pela música, Nuria tem desenvolvido nos últimos anos um intenso trabalho de divulgação da obra do pai e do marido. Escreveu e editou várias publicações sobre Schoenberg, fundou o Arquivo Luigi Nono em Veneza (1993) e é presidente da Arnold Schoenberg Center Foundation, em Viena, desde 1997."Arnold Schoenberg 1874-1951", a exposição multimédia itinerante que se encontra patente ao público na Fundação Gulbenkian durante os Encontros de Música Contemporânea, a decorrer entre 3 e 16 de Maio, resulta de um sonho antigo. "Em 1974, o ano do centenário do nascimento do meu pai, realizou-se em Viena uma grande exposição documental. Era uma mostra para eruditos, tinha sobretudo partituras. Para o visitante comum era pouco interessante", comenta. "Quando pensei neste projecto foi ponto assente que deveria basear-se também na música e na palavra, algo que foi possível concretizar graças à evolução da tecnologia. O visitante ouve a música de Schoenberg, a sua voz, explicações sobre a sua vida e a sua obra?" Um dos pontos de partida foi o documentário biográfico "Arnold Schoenberg (1874-1951)", publicado por Nuria em 1992. "Estive seis meses em Los Angeles. Li tudo o que Schoenberg escreveu. A ideia era fazer uma biografia a partir do seu encontro com outras pessoas, algo que ele próprio ambicionava quando era vivo." Com a ajuda do seu irmão Lawrence Schoenberg e da musicóloga Erika Schaller, Nuria prosseguiu o seu trabalho de investigação e organização e a exposição tomou forma. Foi inaugurada em 1996, em Veneza, três dias antes do terrível incêndio que destruiu o mítico Teatro La Fenice e desde essa data tem percorrido com grande sucesso as principais cidades europeias.Quando Schoenberg morreu, Nuria tinha 19 anos. Foi a primeira filha do seu segundo casamento. A sua mãe era Gertrud Kolisch, irmã de Rudolf Kolisch, violinista do famoso Quarteto Kolisch e antigo discípulo de Schoenberg. Nascida em Barcelona em 1932, Nuria emigrou com os seus pais para os Estados Unidos com apenas um ano de idade. Hitler tinha subido ao poder e Schoenberg foi demitido da sua função de professor de composição da Academia Prussiana das Artes. Como muitos judeus, Schoenberg exilou-se nos Estados Unidos. Fixou-se primeiro em Nova Iorque e um ano depois em Los Angeles, onde viveu devotado à família, à música e aos seus alunos. Nenhum dos seus três filhos seguiu uma carreira musical. Nuria estudou biologia, Lawrence é matemático e Ronald juiz. "Nem eu nem os meus irmãos tinhamos talento. 'Prodígios? Só se for na forma como desistem depressa', dizia o meu pai" Recorda Schoenberg com ternura e um sorriso nos lábios. "A ideia que tenho dele é a de um pai afectuoso que se ocupava muito de nós. Podia-se conversar com ele sobre qualquer coisa. Era severo, tinha grande sentido ético e um grande respeito pelo próximo. Sempre nos ensinou que devíamos fazer aquilo que queríamos do melhor modo. Se a opção era ser jardineiro, então tínhamos de ser o melhor jardineiro do mundo."Um dos vídeos que acompanham a exposição mostra Schoenberg, com a sua mulher Gertrud e com o compositor George Gershwin, num campo de ténis. Schoenberg brinca, salta, ri-se? Nuria pára e observa deliciada: "As pessoas pensam que Schoenberg era um homem muito sério e circunspecto. É assim que aparece nas fotografias. Estas imagens dão a conhecer o seu lado brincalhão. A exposição também é importante por isso, além da música, mostra uma dimensão humana pouco conhecida."Dos anos da sua juventude, lembra-se de Los Angeles ter uma vida cultural pouco desenvolvida: "Havia poucos concertos e a maior parte era de fraca qualidade. Só íamos no caso de ser alguma coisa especial, por exemplo quando era Otto Klemperer a dirigir. Mas ouvíamos todos os dias um programa de rádio que só passava música clássica." Da música do pai, a impressão mais forte foi a preparação do primeiro disco do "Pierrot Lunaire". "Os músicos ensaiavam lá em casa, eu seguia tudo atentamente. Depois acompanhei o meu pai às gravações."Nessa época viviam a quinze quilómetros de Stravinsky, mas nunca se visitaram. "Só conheci Stravinsky muito mais tarde, em Veneza. A família de Stravinski não tinha nada a ver com a nossa, que era uma família modesta. O meu pai vivia absorvido pelas suas aulas, pelos seus alunos - era fantástico como se adaptava às capacidades de cada um! Tinha uma maneira de ser muito diferente de Stravinski."Das outras personalidades europeias que se encontravam exiladas nos EUA, Nuria recorda sobretudo Alma Mahler: "Era amiga do meu pai desde os tempos de estudante. Ambos tinham sido alunos de Zemlinski. Tinha uma personalidade fortíssima. Eu admirava-a muito." Do escritor Thomas Mann, a recordação é mais vaga: "Vi-o uma ou duas vezes. Não era muito simpático com as crianças. Era muito germânico. O meu pai ficou muito magoado por ele ter atribuído a invenção do dodecafonismo a Adrien Leverkün no romance 'Doutor Fausto', a alguém que personificava o estado de degradação da Alemanha. Se Thomas Mann lhe tivesse dito, podia ter-lhe sugerido um método de composição fictício, que fosse adequado à personagem. Mais tarde fizeram as pazes, tinham de mostrar ao mundo que duas figuras da sua estatura intelectual e artística também eram capazes de ser generosas."Considerado demasiado revolucionário pelos conservadores e demasiado conservador pelos revolucionários, Schoenberg foi um dos compositores mais incompreendidos da história da música. Nuria reconhece que esta visão se tem alterado nos últimos anos. "Eu própria não compreendia bem algumas obras, por exemplo o 'Concerto para piano e orquestra, op. 42' [que será interpretado por Michel Béroff e pela Orquestra Gulbenkian, sob a direcção de Lucas Pfaff, no dia 14, às 21h30], mas as interpretações recentes lançaram outra luz sobre a obra. Antigamente interpretava-se a música de Schoenberg de uma forma muito racional. Agora sente-se mais como música romântica. Quando o intérprete entende a essência da obra, o público também a entende."Da imensa produção de Schoenberg Nuria prefere as peças de grandes dimensões - "Moisés e Araão", os "Gurrelieder", o "Pierrot Lunaire", o Concerto para violino? - mas abstém-se de fazer comentários analíticos: "Não sou musicóloga."A sua ligação à música faz-se pelo lado familiar, afectivo. Depois de seguir de perto a criação das últimas obras do pai, torna-se companheira de outro grande compositor - Luigi Nono, que conhece em 1954, em Hamburgo, durante a primeira audição de "Moisés e Araão". Casam no ano seguinte. "Reconheci traços do meu pai na sua personalidade. A intensidade, a honestidade, a necessidade de fazer algo de novo porque a música tem de andar para a frente e não 'pour épater le bourgeois'. Como o meu pai, Nono interessava-se por tudo: literatura, pintura, arquitectura, filosofia, política... Reuniu uma biblioteca imensa, que hoje está disponível no Arquivo Luigi Nono, em Veneza." Viver de perto a criação artística foi uma das aventuras mais fascinantes da vida de Nuria. Por isso ambiciona que ela chegue a um grande número de pessoas. Em vez da notoriedade, prefere ficar na sombra. "Ser 'filha do compositor', 'mulher do compositor'? converteu-se numa profissão. É algo que faço com imenso agrado, mas não gosto de ser uma figura pública. "Hoje, às 18h30, no Auditório Dois da Fundação Gulbenkian, Nuria Schoenberg-Nono colabora na conferência-recital a cargo do pianista Stefan Litwin, onde serão interpretadas as "Três Peças op.11", as "Seis Pequenas Peças op.19" e a "Sinfonia de Câmara op. 9" (redução para piano de Eduard Steuermann). Uma excelente oportunidade para visitar a exposição e para conhecer em todas as suas dimensões um dos grandes génios da história da música.