Torne-se perito

Interdito a todas as idades

No Estado Novo, a arte tinha duas faces. Numa, era propaganda e tinha o apoio do regime. Na outra, era clandestina e, para a maior parte da população portuguesa, era como se não existisse. Ainda assim, encontrou maneira de sobreviver no escuro.

Além do exame prévio às notícias emitidas, a Emissora Nacional (EN) tinha até ao final do Estado Novo um serviço de censura que emitia "notas de serviço interno", escritas pelo director do serviço de programas ou pelos chamados assistentes musicais e assistentes literários. Nelas podiam ler-se observações como "impróprio e inconveniente para transmissão", "devem ser retirados de programação" ou "por determinação superior, não poderá ser transmitido". Muitas vezes, os trechos ou discos censurados aparentemente não beliscavam em nada o Estado Novo. Outros eram censurados por serem de autores conotados como opositores ao regime, como as "Baladas" de Zeca Afonso.As notas da censura destinavam-se não só a cantores de intervenção, como também a grupos folclóricos ou cantares ao desafio. O serviço interno de censura encarregava-se de riscar com pregos, destruir ou "remeter para arquivo" os discos ou faixas censuradas. Nos arquipélagos, a censura não se sentia da mesma forma. Como refere João Coelho, actual director de programação da RDP/Antena 1, no centro de difusão dos Açores da EN chegavam a passar canções de Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira. Se a rádios estatal era, nas palavras de Luís Filipe Costa, antigo chefe de noticiários do Rádio Clube Português (RCP), "mais papista do que o papa", o RCP, apesar de ter sido criado para apoiar Franco na altura da Guerra Civil de Espanha, tinha uma postura um pouco mais aberta, em parte porque havia publicidade que era preciso fazer render e o canal tinha de cativar audiências. Não deixava, no entanto, de ter um serviço de fiscalização, tal como a Rádio Renascença.Foi a partir da década de 60 que a censura passou a exigir um exame prévio das letras dos discos a gravar. Era José Niza, músico e produtor de José Afonso, quem dialogava com os censores, usando de estratégias como apresentar-lhes letras mais contestatárias do que aquelas que pretendiam gravar. Como os censores não podiam cortar tudo, os artistas acabavam por conseguir gravar o que queriam. Mesmo assim, a apreensão de discos continuava, a realização de espectáculos era condicionada e músicos como José Afonso, Manuel Freire, Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira e Francisco Fanhais eram perseguidos.Os festivais RTP da canção tiveram também um papel importante, especialmente na década de 70. Foi por lá que passou a "Tourada", protótipo da canção-metáfora contra o regime, e "Depois do Adeus", senha para o mobilização do golpe militar. No I Festival de Música Popular Portuguesa, com a presença dos melhores músicos da época, canções censuradas tiveram de ser trauteadas, apenas três semanas antes do 25 de Abril.Até aos anos 50, não havia censura prévia aos livros, que eram apreendidos, já depois de publicados, na sede das editoras, nas livrarias ou até nas casas dos escritores, para serem destruídos ou arquivados. As editoras dos livros apreendidos tinham de indemnizar os livreiros da despesa com a compra de livros que nunca chegariam a ser vendidos. A Direcção de Censura era formada por oficiais das Forças Armadas, pessoas sem qualquer preocupação cultural que agiam na mais completa arbitrariedade. Não sabendo, muitas vezes, como actuar, optavam por cortar tudo, votando muitas obras ao esquecimento. Em 1939, Miguel Torga foi preso pela publicação do seu "Quarto Dia da Criação do Mundo", um romance autobiográfico em que o escritor retrata o regime franquista. Nem a criação de um Conselho de Leitura para orientar o procedimento dos oficiais do Exército viria a mudar o estado das coisas. Já nos anos 50, saiu um decreto segundo o qual as tipografias que imprimiam um livro do género económico ou político-social teriam de enviar um exemplar à censura para exame prévio. Francisco Lyon de Castro, fundador da editora Europa-América, relembra o caso do livro "Grandes Doutrinas Económicas", de Fernando Piteira Santos. A obra foi publicada em 1966 com o nome falso de Arthur Taylor, o que lhe permitiu escapar à censura, ao contrário do que aconteceria com um outro livro do mesmo autor, publicado com o seu nome verdadeiro. Os autos de apreensão dos livros não só eram feitos pela PIDE, como também pela PSP, pela GNR e até pelos Correios, cujos funcionários - recebida uma comunicação dos censores - punham imediatamente de parte os livros censurados que lhes chegavam. As apreensões eram feitas em todo o território português, do continente até Timor, o que veio a ser facilitado com um sistema de comunicações rádio entre os vários órgãos repressivos. A censura recaiu sobre escritores como Fernando Namora, António José Saraiva, Urbano Tavares Rodrigues, Mário Cesariny, Natália Correia ou Manuel Alegre, que viu todos os seus livros censurados. No entanto, havia círculos de "insubmissos" que faziam uma distribuição clandestina dos livros, muitas vezes sob a forma de cópias manuscritas. A "Era das Tempestades", obra do deputado socialista, teve uma publicação de 15 mil exemplares que se esgotaram nos primeiros 15 dias após a sua publicação, tempo demasiado curto para a PIDE se aperceber. A última apreensão de um livro poético foi feita em 1973, com a "honra" a pertencer a José Manuel Mendes, autor de "A Esperança Agredida". Como este poeta, muitos outros viveram "numa escalada que o 25 de Abril interrompeu fabulosamente"."Sofia e a Educação Sexual", de Eduardo Geada, teve estreia comercial a 1 de Outubro de 1974, depois de meses antes ter sido proibido pela censura. "Levei o filme para ser visionado", relembra o realizador que pouco tempo depois recebeu a notícia de que a obra fora autorizada, mas com cortes. "Interpusemos recurso e, em finais de Março, fui chamado ao edifício da censura, onde me explicaram que o filme tinha sido reprovado." Na ficha de censura, o filme era considerado dissolvente dos valores morais estabelecidos e susceptível de levantar problemas de ordem sociopolítica."Sofia" foi um êxito, tal como muitos dos filmes proibidos antes de 25 de Abril. Obras como "O Último Tango em Paris" ou "Laranja Mecânica" fizeram esgotar salas. Mesmo um filme mudo e a preto e branco de 1925, "O Couraçado Potemkine", teve lotações esgotadas durante muito tempo, recorda Lauro António, autor do livro "Cinema e Censura em Portugal". Bastava existir a "aura" de proibido e as bilheteiras estava, garantidas. Foi assim que os filmes pornográficos fizeram furor nos primeiros anos da democracia. Durante alguns anos, Portugal serviu mesmo de "oásis" aos cinéfilos espanhóis que iam a cinemas de fronteira ver os filmes interditos.Durante o Estado Novo, uma película apresentada à censura podia ser aprovada na íntegra ou com cortes, ou proibida. Mas a origem dos filmes também significava algumas diferenças de tratamento. José Manuel Castello Lopes, presidente da distribuidora Filmes Castello Lopes, recorda que, juntamente com os filmes estrangeiros, seguia para a Comissão uma lista de legendas. "Mandava a prudência que o número de cópias a legendar se definisse depois de recebido o ofício da censura", lembra o distribuidor, que chegou a retirar do mercado filmes cortados duas e três vezes.As produções portuguesas, por dependerem do Estado para existir, eram logo seleccionadas quando chegava a altura de se apresentar o guião. Só eram escolhidas aquelas que eram mais agradáveis ao regime. Os realizadores António Lopes Ribeiro e Leitão de Barros eram os preferidos. No entanto, a partir dos anos 60, dá-se o advento do Cinema Novo português: mais independente, sem apoios do Estado, mas ainda obrigado a visionamento pela censura. É o período de Fernando Lopes e Paulo Rocha."A censura durante a ditadura funcionou de uma forma arbitrária, um pouco ao gosto pessoal", considera Lauro António. Não havia um critério único e os próprios distribuidores enviavam os seus filmes às comissões mais permissivas. No Governo de Marcelo Caetano, algumas obras foram recuperadas, como "Ivan, o Terrível", de Eisenstein, e alguns filmes tiveram licença para serem exibidos em salas estúdio ou em festivais (com apenas uma projecção). Mas, a partir de 1961, a guerra colonial introduziu um novo tema proibido, e filmes como "Oh! What a Lovely War" ou "A Colina Maldita" (ver index na página ao lado) não passaram, porque podiam desmoralizar as tropas portuguesas em África.

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