Uma lata barulhenta
A Estação Espacial Internacional será barulhenta de mais. Tão barulhenta que é provável que os astronautas fiquem com problemas de audição ou que não consigam ouvir eventuais sinais de alarme. O problema coloca-se sobretudo com os módulos construídos pela Rússia, e não há soluções eficazes à vista, pelo que a NASA abafou a situação enquanto pôde.
Imagine o que é passar meses dentro de uma lata com o barulho constante do ar condicionado e de inúmeros outros aparelhos sempre ligados, numa banda sonora constante e irritante. E a única coisa certa é que não pode abrir a porta e sair lá para fora. Pois é exactamente isto que se vai passar nos módulos de fabrico russo da Estação Espacial Internacional (ISS), onde os níveis de ruído serão tão elevados que os astronautas poderão nem conseguir ouvir os alarmes em situações de emergência.No Zaria, o primeiro módulo da ISS a ser lançado, em Novembro passado, os níveis de ruído são de 72,5 decibéis, o que é mais do que um aparelho de ar condicionado a trabalhar numa divisão fechada. Não é insuportável, mas obriga a levantar a voz para se fazer entender. Os níveis de ruído máximos para a ISS deveriam ficar-se entre os 50 e os 55 decibéis.Este problema foi discutido no seio da agência espacial norte-americana (NASA) desde que a Rússia se juntou ao projecto, em 1993. O acordo prevê que a Rússia construa alguns dos módulos da estação - nomeadamente o de alojamento dos astronautas -, mas os níveis de ruído da tecnologia russa não correspondem às exigências. As fontes de ruído são inúmeras: ventoinhas, filtros de ar, aspiradores de pó e bombas para várias funções. E todos estes aparelhos têm de estar a funcionar permanentemente, pelo que os astronautas não só terão de conversar com a voz umas oitavas acima do normal como terão dificuldade em dormir.Este problema, no entanto, foi silenciado, em termos de divulgação pública, e só é falado agora porque a revista britânica de divulgação científica "New Scientist" obrigou a NASA a revelar documentos - ao abrigo do Freedom of Information Act, a lei norte-americana que obriga a administração pública a divulgar documentação quando esta é solicitada pela comunicação social.Sabe-se que os cosmonautas que cumpriram missões a bordo da estação espacial russa Mir, durante os últimos 13 anos, ficaram com problemas de audição. Mas Jerry Goodman, o responsável na NASA pela acústica da ISS, escuda-se na confidencialidade entre médico e doente para não avançar mais detalhes, embora tenha dito à "New Scientist" que, uma vez regressados à Terra, os cosmonautas recuperaram parcialmente. O Zaria foi lançado em finais do ano passado, mas existe um relatório datado de Setembro de 1997 em que o Centro Estatal de Investigação e Produção Espacial Krunichov, em Moscovo, alertava para os níveis de ruído deste módulo. Em Julho do ano passado, um outro relatório da NASA avisava que "a capacidade da tripulação para dormir, trabalhar e comunicar ficará afectada" e em Novembro, nas vésperas do lançamento do Zaria, um outro documento da NASA referia que os sinais sonoros de alarme que disparariam numa situação de emergência dificilmente poderiam ser ouvidos pela tripulação. Ainda assim, o Zaria acabou por ser posto em órbita, com a invenção de soluções de recurso, como revestimentos de espuma para abafar o ruído. Mas, noutros documentos da NASA, estas soluções são classificadas como insuficientes, pois apenas reduzirão uns poucos decibéis o barulho. Jerry Goodman admite que não há a certeza de que a espuma resulte. Os russos sugerem que os astronautas não passem mais do que quatro horas por dia no Zaria e nunca mais de duas horas nas zonas mais barulhentas. Também sugerem que os astronautas usem tampões nos ouvidos. Mas outros documentos, feitos no Centro da NASA Lyndon B. Johnson, em Houston (Texas), onde é feito o controlo da construção da ISS, consideram as restrições temporais "inaceitáveis" e que o uso de tampões devia era ser proibido, pois pode impedir os membros da tripulação de ouvir os sinais de alarme. Por enquanto, a questão continua sem solução, mas a construção do maior quebra-cabeças da história - uma tarefa para seis anos, a 354 quilómetros de altitude - vai continuar. A 20 de Março, o vaivém norte-americano Discovery deverá partir naquela que será a primeira missão em que uma nave vai acoplar com a ISS - que neste momento tem apenas montados dois dos 45 módulos previstos, o Zaria russo e o norte-americano Unity. O vaivém vai lá deixar cerca de 2,5 toneladas de material necessário para a montagem da estação, como computadores, câmaras, ferramentas, peças sobressalentes e vestuário para os astronautas. Os atrasos, no entanto, também vão continuar: o lançamento do módulo de serviço, onde serão os alojamentos dos astronautas, estava previsto para Setembro, mas já foi adiado para Novembro. Ainda assim, para 26 de Abril está prevista uma cerimónia de simbólico cortar da fita na fábrica da firma de construção espacial Energia, perto de Moscovo, para assinalar o facto de o módulo, de fabrico russo, estar quase pronto. Os problemas de ruído, no entanto, deverão ser os mesmos que no Zaria, quando a primeira tripulação lá chegar, no ano 2000.