Salazar, escolhido por Deus e pela irmã Lúcia

Salazar era o escolhido de Deus para governar o país e conduzir o povo pelos caminhos da paz e da prosperidade. Em 1945, era assim que Lúcia, a vidente de Fátima, se referia ao ditador, numa carta dirigida ao cardeal Cerejeira. Mas a tese da irmã Lúcia repetia os argumentos colectivos do episcopado para dizer que na estabilidade do Estado Novo estava "o dedo de Deus", estabelecendo a relação entre Fátima e a predestinação de Salazar. O investigador José Barreto conta e explica as histórias.

Foi numa hora de muitas "preocupações, desgostos e talvez dúvidas" para o presidente do Conselho, Oliveira Salazar, que, em 13 de Novembro de 1945, o então cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, enviou ao seu amigo e antigo condiscípulo um cartão tranquilizador. Nele se referia a uma carta da irmã Lúcia que Cerejeira recebera e onde a antiga vidente de Fátima fazia referências ao que entendia ser a missão divina de Salazar. "O Salazar é a pessoa por Ele (Deus) escolhida para continuar a governar a nossa Pátria, ... a ele é que será concedida a luz e graça para conduzir o nosso povo pelos caminhos da paz e da prosperidade", dizia a carta de Lúcia cuja reprodução foi enviada por Cerejeira juntamente com o cartão pessoal. O documento foi lido pelo investigador José Barreto, do Instituto de Ciências Sociais, no recente curso de História Contemporânea, organizado pela Fundação Mário Soares, sobre "Portugal e a Transição para a Democracia, 1974-76". Barreto pensa que o seu conteúdo já tinha sido divulgado antes, mas permaneceu até agora pouco conhecido. A carta foi enviada a Salazar, recordou o investigador na sessão do curso em que falou sobre "A Revolução, o Estado e as Igrejas", "a poucos dias das primeiras eleições de deputados à Assembleia Nacional a que a oposição pôde concorrer [organizada no Movimento de Unidade Democrática], ainda que com enormes limitações práticas". Essas eleições, referiu ainda José Barreto, foram aquelas "que Salazar, com uma frase que se tornou célebre, considerou irem ser 'tão livres como na livre Inglaterra'". Salazar estaria - de acordo com o seu biógrafo Franco Nogueira, por exemplo - a pensar não continuar como presidente do Conselho de Ministros. Mas também teria medo do que lhe poderia acontecer se abandonasse o lugar. Por isso Cerejeira escreve-lhe (dirigindo-se a ele como "António", tendo em conta a forma pessoal com que se tratavam, da amizade que vinha dos tempos de estudantes de Coimbra) e resolve transcrever-lhe a carta da irmã Lúcia com o objectivo de o tranquilizar. "Deve levar-te muita consolação e confiança", diz o cardeal sobre a missiva da vidente. "E se tu a lesses toda, mais consolado e confiado ficarias ainda. Escuso de dizer que isto que ela diz, o não diz dela mesma, mas por indicação divina (segundo ela deixa entender)."E se Salazar tinha sido escolhido por Deus, era preciso, diz Lúcia na carta citada por Cerejeira, "fazer compreender ao povo que as privações e sofrimentos dos últimos anos [referia-se a vidente aos anos da II Guerra Mundial] não foram efeito de falta alguma de Salazar, mas sim provas que Deus nos enviou pelos nossos pecados." Aliás, "ao prometer a graça da paz" à nação, Deus já anunciara "vários sofrimentos, pela razão de que nós éramos também culpados". E, bem vistas as coisas, olhando "para as tribulações e angústias dos outros povos", bem pouco pedira Deus aos portugueses. Ironicamente, Lúcia não terminava os seus recados desta carta escrita em 7 de Novembro de 1945, em Tuy (Galiza, Espanha), sem uma nota que, a outras pessoas, poderia valer a prisão política: "Depois, é preciso dizer a Salazar que os víveres necessários ao sustento do povo não devem continuar a apodrecer nos celeiros, mas serem-lhe distribuídos."Este documento - que está no Arquivo Salazar, na Torre do Tombo e também disponível na página da Fundação Mário Soares na Internet (http://www.fmsoares.pt/) - e as afirmações nele contidas revelam, diz José Barreto ao PÚBLICO, "a relação entre a produção profética de Fátima e a sacralização do regime". Na sua intervenção no curso da Fundação Mário Soares, Barreto ironizou: "Não se trata do 'segredo de Fátima', mas de um dos muitos segredos de Fátima que importa dar a conhecer, analisar e interpretar." A relação entre Fátima e a predestinação de Salazar já tinha sido estabelecida três anos antes, num documento que o investigador considera fundamental para entender essa dinâmica político-religiosa. Numa carta pastoral colectiva do episcopado português, de 1942, sobre as bodas de prata das aparições de Fátima, os bispos referiam-se às diferenças entre os tempos da I República (dominados pelo anti-clericalismo quase sistemático) e do Estado Novo em termos que não deixavam margem para dúvidas. O camartelo demolidor, as ruínas, a desolação são características implicitamente apontadas à Primeira República, contrariamente à ordem nova, ao desenvolvimento tornado ressurreição. Os bispos chegam ao ponto de dizer que, na transformação, está "o dedo de Deus" (ver caixa). Essa carta pastoral colectiva é, na opinião de José Barreto, "a que mais se aproxima das cartas pessoais de Cerejeira a Salazar". E a irmã Lúcia acabou por se tornar "uma peça importante na Igreja portuguesa deste século". Em 26 de Maio de 1945, com a guerra à beira do fim, Cerejeira felicitava de novo Salazar, em carta dirigida ao ditador, por ver "coroada a obra de defesa de Portugal": "O facto de ser a nossa paz um favor do céu [predito pela irmã Lúcia] não te tira nem diminui o mérito, pelo contrário faz de ti um eleito, quase um ungido de Deus". E, a seguir, diz o cardeal: "Foste tu o escolhido para realizar o milagre."Em 1946, foi por sugestão de Salazar que os bispos organizaram uma cerimónia na Praça do Império, para agradecer, na presença da imagem de Nossa Senhora de Fátima, o facto de Portugal não ter participado na II Guerra Mundial. Um gesto muito valorizado pelas mais altas figuras do episcopado: além de Cerejeira, também D. Manuel Trindade Salgueiro, um "fervoroso admirador" de Oliveira Salazar, e D. José da Costa Nunes, que viria a ser patriarca das Índias, e que também admirava o ditador. Talvez por causa destes apoios, as próprias alocuções do Papa Pio XII sobre a guerra e os diversos documentos de actualização da doutrina social da Igreja produzidos por esse Papa, não foram, na altura, publicados em Portugal. Não eram apenas os bispos a valorizar o ditador português. No seu recente livro "O Estado Novo e a Igreja Católica" (ver PÚBLICO de ontem), Manuel Braga da Cruz conta um episódio que mostra que o então Papa Pio XII também nutria alguma simpatia por Salazar. Em Outubro de 1940, ao receber as credenciais do embaixador português, Carneiro Pacheco, Pio XII declarou: "O Senhor [Deus] deu à Nação portuguesa um chefe de governo que tem sabido conquistar não só o amor do seu povo mas também o respeito e estima do mundo." Atitude diferente da do seu antecessor, Pio XI, que quando negociava a Concordata com Portugal, em 1938, disse ao embaixador Quevedo que Portugal deveria resistir "no meio das aflições e penas que há pelo mundo". O embaixador entendeu a frase como uma referência ao comunismo, ao que o Papa respondeu, ainda segundo a citação feita por Braga da Cruz, que não se referia ao comunismo mas sim "ao racismo, ao nazismo criminoso que perverte as almas".

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