Histórias da montanha
Inicia-se a tentativa de escalada com um "trekking" de aclimatação, monta-se um acampamento base e depois começa a aventura. Parece linear, mas nada o é nas vastidões verticais dos Himalaias. O português João Garcia ainda mal chegou ao Evereste e já tem muitas histórias para contar.
"A dado momento, Pascal, em último na cordada, é atingido por uma pedra no joelho e cai. Bom, imaginem, fiquei com um escalador inexperiente e forte, outro experiente em baixo de forma, Pascal lesionado e Lapka, que secretamente tem vindo a fazer greve de fome e a enfraquecer por não gostar da nossa alimentação. Além do mais, estamos a cerca de dez dias da aldeia mais próxima. Que fazer, prosseguir ou recuar?"A interrogação, comunicada por "e-mail" desde Katmandu, capital do Nepal, é do alpinista português João Garcia e a resposta, adiante-se, foi "prosseguir". O grupo, que pretendia fazer um "trekking" de aclimatação à altitude (marcha para habituar o organismo às condições que irá encontrar durante a escalada) antes de rumar ao Evereste, decidiu continuar. Conclusão: "Foi o nosso erro, pois nem conhecíamos metade da história."João Garcia deixou Katmandu durante a semana passada, rumo ao lado tibetano do Evereste, cujos 8848 metros continuam a desafiá-lo. Depois de duas tentativas falhadas (na segunda andou acima dos 8500m), o alpinista português está novamente na montanha mais alta do mundo. Com ele estará um grupo que inclui, para lá de vários clientes, o belga Pascal Dbrwer, seu parceiro e sócio, e o cozinheiro sherpa Lapka. O primeiro lesionou-se, o segundo estava fraco e o "trekking" transformou-se numa aventura perigosa.De regresso à descrição de Garcia: "Continuamos para o próximo 'col' [passagem entre montanhas], que tem uma descida muito perigosa." A intenção era conhecer uma rota que terminava no acampamento base do Makalu, mas tudo se complicou. O português e Pascal Dbrwer pretendiam preparar-se, a eles e ao cozinheiro, para estarem em forma à chegada ao Evereste, onde montariam o acampamento à espera dos clientes. Dois deles também chegaram mais cedo a Katmandu e juntaram-se ao grupo.Tudo começou bem e depressa, os caminhantes atingiram o Mera Peak sul, a 6400m de altitude. Depois surgiram as contrariedades. Primeiro da geografia, depois da meteorologia. "Sabíamos que era provável que não houvesse gente nas aldeias marcadas nos mapas, mas o que não sabíamos era que do lado do Makalu tinha nevado uns três dias. Cheguei a andar com neve pela cintura e nos últimos dois dias antes de chegarmos a uma aldeia com gente já não tínhamos quase nenhuma comida (tipo um saco de chá e uma sopa por dia)."Algumas passagens complicadas e muita neve traiçoeira depois, finalmente sinais de presença humana. "Chegamos a uma aldeia habitada, onde podemos saciar a fome e apanhar algumas doenças de estômago", relata o português. Apesar da ironia, parece um final feliz, mas ainda faltava apanhar o avião para Katmandu, o que obrigou a algumas marchas forçadas. Na capital do Nepal, a 600m de altitude e com temperaturas de 38 graus, o choque climático é violento: "Quase que nos apagamos, ao ponto de termos de andar de noite."João Garcia garante que aprendeu uma lição. "Nunca mais me meter a fazer coisas complicadas fora de época e com gente que não conheça", promete ele a si próprio. Em vão, presume-se. Porque a sua vida de guia de montanha o obriga exactamente a fazer coisas complicadas com desconhecidos.Seja como for, ficaram algumas notas positivas. Para começar, a aclimatação à altitude, fundamental para preparar escaladas a paragens mais radicais. Mas também a observação das condições das montanhas e a percepção do momento de forma dos membros da expedição que já se encontravam em Katmandu. A seguir, e ainda lamentando a subida do valor da licença de escalada decidida pela China (que tutela o lado tibetano do Evereste), há que fazer as malas e rumar à montanha.Não sem dedicar algum tempo a falar com Elizabeth Hawley, a septuagenária neozelandesa que é uma espécie de arquivo vivo da história do Evereste. Ela regista minuciosamente os dados de cada expedição, compara proezas, colige números, recolhe depoimentos. Um dia, "lá para o fim do ano 2000", promete editar um livro que será uma verdadeira enciclopédia do montanhismo no pico mais alto do planeta.Os nomes de João Garcia e dos seus companheiros lá estarão, na lista dos que tentaram, para já; entre os que chegaram ao cume, se tudo correr pelo melhor. Até à época de 1999, um total de 808 pessoas conseguiram 1052 escaladas bem sucedidas, mas o número reduz-se drasticamente para apenas 69 alpinistas quando se fala de chegar ao cume sem recorrer ao uso de garrafas de oxigénio, exactamente o que pretendem o português e os seus companheiros. Mas, muitas vezes, o preço a pagar é alto de mais: nas encostas do Evereste já morreram 161 montanhistas.Tudo pelo sonho de passar alguns minutos no ponto mais alto da Terra, onde o frio queima, o ar não entra nos pulmões e a mente prega partidas traiçoeiras. Há gostos para tudo.