Prazeres e abjecções de Patrícia Garrido
A visão do último ano de trabalho de José Pedro Croft reforça a sensação de solidez da sua carreira, confirma a produtividade da direcção tomada pela sua escultura e revela os desenvolvimentos recentes da cor nos seus desenhos. Os jogos de vazios e de cheios, de luminosidade e de sombra são a essência de um trabalho escultórico que se confronta ainda com problemática contemporânea do monumento. Nos desenhos, a mesma dominante utiliza agora a cor para definir de modo mais rigoroso os espaços de inscrição das formas.
Patrícia Garrido, nascida em 1963, venceu recentemente a quinta edição do Prémio União Latina, no valor de 1500 contos, com a instalação "Período Azul", que pode ser observada na Culturgest, em Lisboa, até domingo. A pintura e o desenho marcaram as primeiras exposições individuais da artista, realizadas entre 1988 e 1993, ano em que apresenta, na Galeria Monumental, trabalhos bidimensionais onde se intui o desejo de produção de objectos."As pinturas do princípio dos anos 90 são as mais relevantes", considera Patrícia Garrido, que recorda as mostras realizadas na Loja de Desenho (1989), na Galeria Quadrum (1991) e na Galeria Monumental (1993): "Essa já era um bocadinho a passar para os objectos; era quase uma instalação". Relativamente aos temas abordados nos seus trabalhos, nota serem decorrentes da sua experiência pessoal: "São coisas da minha vida, são quase auto-retratos". E acrescenta: "As pinturas correspondiam ao meu estado de espírito da altura, que era um bocadinho avesso ao que se fazia; lembro-me de que costumava reagir contra o sistema montado, fazia questão de não trabalhar a par".Um dos prazeres maiores de Garrido era, revela, encarar a pintura como uma actividade idêntica a comer ou beber. "As pinturas têm a ver com os instintos primários: era isso que queria fazer". A produção de objectos surge após um "momento de crise", quando começou a sentir que "as pinturas eram cópias das pinturas anteriores; para mim foi muito claro que tinha de começar a fazer outra coisa, não quer dizer que não volte a pintar um dia, mas para já..."Assim, principia a realizar projectos em que utiliza uma grande diversidade de meios (fotografia, vídeo, escultura, etc.), com os quais desencadeia processos com características mais conceptuais. "O mudar os meios não era um projecto; era algo que ia aparecendo conforme o trabalho em questão: cada trabalho tem para mim um meio que lhe corresponde, que o torna mais perfeito". Apesar dessa viragem no seu percurso, continua a privilegiar a intuição como factor essencial para a execução de uma obra."Quilómetros Amarelo, Azul e Rosa Fotografados" (1997) é um dos trabalhos que se pode enquadrar na vertente documental da arte conceptual. Trata-se de uma obra em que a artista desfia um novelo com 1000 metros de cada uma das cores nomeadas no interior de três casas. Em Madrid, na exposição "Observatório", onde foi apresentado, Garrido instalou o registo fotográfico da acção. Contudo, refere, os fios existem fisicamente e podem ser apresentados numa outra situação: "Nunca os expus directamente; na altura, montei-os em casas que me foram emprestadas e fotografei-os". Conceptualmente idêntico a este projecto é "Rolled Kilometer I, II, III" - neste caso a artista enrolou película aderente. A questão da auto-representação assume também um significado particular na obra de Patrícia Garrido. Veja-se, por exemplo, o conjunto de esculturas "O Prazer É Todo Meu" (1994), que podem ser colocadas em diálogo, por exemplo, com peças de Bruce Nauman, onde o norte-americano representa o vazio. No caso de Garrido, os objectos são uma espécie de contra-molde ligeiramente corrigido do seu corpo: "Estava a pensar neles como electrodomésticos de uso quotidiano; eram objectos masturbatórios, que podem ser vistos na continuação das minhas pinturas", explica. E continua: "Foi como voltar à ideia de representar os instintos básicos, o não representável, tal como fiz depois em Serralves [exposição "Mais Tempo, Menos História" (1996)], num vídeo formado por aqueles pequenos tempos da vida que nem se nomeiam e que, no entanto, duram imenso; sempre me agradou trabalhar com esse aspecto do tempo que não existe - o não tempo; esses objectos eram também as partes não nomeáveis da nossa intimidade". Para Garrido, "o espaço onde se vive é como se fosse um alter-ego, um retrato". Esta definição é materializada num conjunto de "apartamentos-tipo" - "TO", "T1", "T2", "T4" e "T6" - que realizou entre 1997 e 1998. O território de cada habitação é representado a partir da respectiva planta, revelada sob a forma de estrados que correspondem a cada uma das divisões das casas originais. Todas elas, com excepção do primeiro trabalho da série - "TO" -, foram habitadas pela artista. "A minha primeira ideia era fazer apartamentos como se fossem personagens; o 'TO' é um espaço ideal, o espaço mais pequeno habitável, que elaborei a partir do 'Neufert', um livro de arquitectura".Na sequência destas obras surge a instalação "Período Azul" - repare-se na riqueza semântica do título, que ironiza quer com a história da arte, quer com a intimidade feminina. "Penso que vou deixar por aqui esta peça, que é formada por móveis de uma casa de onde saí - são restos camuflados do meu passado: estão lá pintados de azul, é muito simples", sublinha. E termina: "Queria que a peça tivesse um lado absolutamente abjecto, por isso uso este azul de má qualidade; imaginei-a sempre com uma luz néon em cima, como aquelas utilizadas na cozinha, que têm uma luz branca e dão um certo desconforto".