Em versão americana
Houve alguns momentos de génio numa actuação, de resto, convincente ao estilo "americana". Sobretudo Dylan mostrou a pertinência de revisitar os seus clássicos aos 58 anos de idade, numa digressão europeia, que na noite de quarta passada arrancou em Lisboa. E só foi pena que não atraísse público suficiente para encher o pavilhão Atlântico do Parque das Nações.
Venderam-se 3100 bilhetes para o concerto de Dylan em Lisboa, na noite de quarta passada. O que não equivale a um desastre, atendendo à idade e ao momento da sua carreira, como ainda à circunstância desta ser uma semana invulgarmente preenchida de concertos. Mas é claro que não chegou para encher o pavilhão Atlântico, mesmo com o palco colocado a meio da sala. Este recinto não terá sido a melhor escolha e a prova é que o menos amplo Coliseu do Porto esgotou ontem para ver o mesmo concerto (também é verdade que Dylan tem mais fãs do Norte, como já se sabia pela sua primeira passagem pelos palcos portugueses há seis anos atrás).Dylan é capaz do melhor e do pior, isso já toda a gente sabe. De resto, nada se sabia deste concerto em Lisboa, tanto mais que se tratou do arranque de uma digressão europeia. Como é costume, aliás, só dez minutos antes do início da actuação Dylan estabeleceu com os músicos o alinhamento definitivo do concerto. Se há que fazer um balanço global desta actuação de cerca de hora e meia então deverá reconhecer-se que este não foi dos concertos de antologia dos anos 90 (se comparado com, por exemplo, a passagem pelo segundo Woodstock ou pelo programa MTV Unplugged), nem tão decepcionante quanto a sua passagem pelos palcos portugueses em 1993. Foi um espectáculo convincente com alguns momentos de inspiração e intensidade superlativas, no género que se convencionou chamar "americana". O paradigma são os Traveling Wilburys, supergrupo que Dylan integrou ao lado de Roy Orbison, Tom Petty, George Harrison e Jeff Lynne entre 1988 e 1990. Este "pot-pourri" de estrelas juntaram-se para criar uma música neoclássica, transitando livremente entre os sons das raízes americanas, do country ao blues, passando pelo rock 'n' roll. Ora foi justamente este tipo de itinerário que Dylan efectuou a propósito dos seus êxitos em Lisboa, num concerto que também poderia ser intitulado "Travelling Wilbury a solo".O "set" acústico nos concertos dele costuma ser a meio. Desta vez, para variar, foi a abrir. Dylan surgiu em palco de fato cinzento completo e laço, ou seja, com um visual que não destoaria em Roy Orbison. Tocando guitarra acústica, acompanhado por contrabaixo, bandolim, bateria e outra guitarra acústica, arrancou com uma moda hillbilly (country rural) sobre um "Gambling Willie" com evidentes conotações autobiográficas. Foi divertido, mas também algo esquisito ver assim o pavilhão Atlântico transformado numa sala de baile do oeste, invocando as velha espeluncas honky tonk ("saloon" onde se canta e dança country). Seguiram-se êxitos antigos da fama de "Mr. Tambourine man", "Masters of war", "Girl from the north country", "Tangled up in blue" e "Tryin' to get to heaven", também tocados em versões acústicas, tirando o último que introduziu guitarra slide, numa aproximação incendiária ao blues rock.Meia hora durou a parte acústica, posto o que houve um curto intervalo, e os músicos voltaram com instrumentos eléctricos. "Maggie's farm", para começar, foi um desses rasgos de génio que só por si valeram o preço do bilhete. A batida era de baile de liceu, as guitarras puro rockabilly e pelo meio Dylan rubricou um solo diabólico na guitarra, curvado sobre si mesmo com os pés metidos para dentro. Depois de um desempenho daquela fúria combustiva, tudo mudou completamente para "Lay lady lay": abrandamento dos tempos, proeminência da guitarra slide em desenhos melancólicos, e a voz de Dylan oscilando entre a imponência e a impotência, mudando de tom a cada verso, tornando ao resto dos músicos quase impossível segui-lo. A tónica estava dava para esta segunda metade da actuação. Dylan haveria de passar uma inteira meia hora a golpear o seu fundo de catálogo, experimentando formas alternativas e sentidos insuspeitos em canções de algum modo desgastadas. O auge, ou se preferirem o cúmulo desta estratégia de revisitação radical, terá sido "Like a rolling stone", com que finalizou esta segunda parte: os tempos foram desacelerados até ao "ralenty", enquanto a letra era completamente desmistificada, perdendo a poesia fatalista do original. E o célebre refrão também não foi poupado, acabando espartilhado entre a acentuação épica do "how does it feel" e o sussurrar do "like a rolling stone". Veio então o encore, ou a terceira meia hora de concerto. Novo início prodigioso com "Love sick", tema que abre o último álbum de originais "Time Out Of Mind", numa versão ainda mais cortante e virulenta que a gravada, com Dylan a assinar um monstruoso solo de guitarra pelo meio. Fazendo de novo a rotação a 360 graus, passou desse inferno para um número de baile rock 'n' roll, onde ressuscitou a sua costela de Chuck Berry. E porque no seu universo "americana" todas as distâncias entre os géneros se transcendem, voltou a trocar a guitarra eléctrica pela acústica para um hilariante "Blowin' in the wind" em versão country. Outra canção, outra viagem, e para acabar em beleza atacou "Highway 61 revisited" numa inverosímil aproximação ao blues rock mais desbundante. Ninguém terá saído deslumbrado, mas mesmo sem segundo "encore", viam-se muitos sorrisos cúmplices à saída do pavilhão Atlântico.