Vinho, mulheres e canções
António Victorino de Almeida é dos poucos homens de cultura com o estatuto de comunicador. Os seus programas Histórias da Música (1972), Temas e Variações (1975) e A Música e o Silêncio (1978) eram feitos «fora de casa», na rua, nos locais, com textos cultos mas informativos, imaginativos mas iluminados pela graça. E, quando em estúdio, tinham movimento e a mesma provocação do pensamento. Eram lições em linguagem televisiva, dos mais inovadores da RTP, ainda por cima de cultura. Não houve muitos outros momentos de televisão em que se juntassem cultura e entretenimento, o que é triste porque a cultura é entretenimento. A presença na TV tornou-se-lhe necessária. Se não tinha programa surgia noutras situações, como comentador ou apresentador do Festival da Canção (1976 e 86). Quando deixou de realizar, a necessidade de aparecer levou-o a participar em inúmeras frivolidades televisivas. Foi a todas, talvez na perspectiva de conseguir dedicar-se a essa actividade que tanto o apaixonou mesmo quando esteve afastado da realização: fazer televisão. Conseguiu agora com Duetos Imprevistos (SIC, segundas-feiras).Cada episódio é dedicado a um compositor. Com uma boa respiração do texto e invenção das cenas e sequências, o maestro precisa dos 50 minutos para chegar a bom porto - que é precisamente uma explicação da obra do autor abordado. Entretanto, com um pouco mais de planificação e de preparação de alguns textos os episódios seriam circulares, quer dizer, e a história ficaria plenamente fechada em total satisfação formativa/informativa para o espectador. Dueto pressupõe diálogo. As virtudes pedagógicas do diálogo já eram aplicadas exemplarmente por João de Freitas Branco há dezenas de anos num programa da Emissora Nacional, O Gosto pela Música, com um contínuo diálogo entre um entendido em música e uma aprendiza (Igrejas Caeiro e Maria Leonor). Mas nestes Duetos o diálogo é mínimo. Como o maestro improvisa, a participação de Bárbara Guimarães não está devidamente acondicionada nos diálogos, apenas nos enquadramentos. O maestro não precisa dela para enviar as suas mensagens aos espectadores mas precisou dela para chegar a um novo público. Em 1972, o maestro chegava à classe média, que era quem tinha televisor. Hoje toda a gente o tem, e a estrela de Chuva de Estrelas é um veículo para chegar a mais lares. Contudo, o maestro deveria ter escrito diálogos mais eficazes televisivamente e Bárbara Guimarães deveria ter preparado melhor as suas deixas. Às vezes é apenas uma actriz amadora.O diálogo foi a principal modernização de Victorino de Almeida nos Duetos. Quanto ao resto, mantém a verve, inteligente e humorada; os textos simultaneamente informativos e opinativos; a demolição dos críticos («a análise musical exerce um certo fascínio sobre pessoas estúpidas»); e faz um excelente enquadramento social e político dos compositores no seu mundo. Ao mesmo tempo, passa-nos a mensagem da necessidade da abertura de espírito para todas as músicas: Anton Bruckner, Franz Liszt, Johann Strauss, todos tinham génio, nós é que precisamos de os entender no tempo (as estórias que o programa conta), no espaço (os lugares que o programa visita) e na música. A arte aprende-se.Os compositores, diz-nos Duetos, não são apenas homens do seu tempo: têm as paixões do momento e de sempre. Tal como eles, os dois apresentadores estão sempre à mesa comendo e bebendo (como Bruckner), falando das apaixonadas e do seu papel na música (Liszt, o Strauss das valsas), e procurando também assim recriar o seu amor pela música, religiosa, popular ou o que seja. No écrã, recriam-se pulsões dos compositores: vinho, mulheres e canções (Wein, Weib und Gesang: é o título de uma valsa de Strauss). Deitada pelo maestro à frente dum altar, Bárbara Guimarães simbolizou esta tríade explosiva.À excepção dos ineficazes diálogos, os três primeiros episódios revelaram-se programas muito completos: com Ideia, com soluções imaginativas de realização, estrutura, argumento, graça. Porventura são semelhantes aos que Victorino de Almeida realizou para a RTP há 20 anos, mas apesar disso a sua linguagem televisiva ainda consegue surpreender. É que nos 70, ainda os nossos «intelectuais» ignoravam a TV, já Victorino de Almeida pensava televisão - e por isso continua ainda no écrã.