As nuvens da Linha do Tâmega
No dia 1 de Janeiro de 1990, a CP desactivou o troço Amarante-Arco de Baúlhe. Desde então, tem-se falado muito na recuperação da Linha do Tâmega para fins turísticos. Mas, no passado dia 7 de Fevereiro, o sonho sofreu mais um abalo: a CP fechou para fins comerciais a estação amarantina, e há quem tema que este seja o prenúncio do fim de toda a linha. Mas o presidente da Câmara de Amarante assegura que o comboio vai continuar a apitar no vale do Tâmega.
A velha automotora já apitara e, por um momento, sentiu-se a emoção própria das chegadas e partidas dos comboios. Mas a Estação de Amarante estava vazia e a chuva que caía com abundância tornava o ambiente pesado e triste. A voragem do tempo tinha arruinado as estações e os carris da Linha do Tâmega, e naquela hora o tempo meteorológico exaltava-lhe a decrepitude."Esta linha era uma coisa linda! Agora, meu amigo, deram cabo de tudo!...", desabafa Francisco Cunha, reformado da CP, que estava ali em conversa com um manobrador, por sinal o único funcionário que a companhia ferroviária mantém em permanência em Amarante. Eram 12h30 e o último comboio vindo da Livração trouxera pouco mais de duas dezenas de passageiros, menos de metade da lotação das duas carruagens ao serviço. A composição seguinte, que partiu às 13h35, levou ainda menos gente. "Se alargassem a via e criassem comboios com ligação a todos os horários da Linha do Douro, havia de ver como isto melhorava...", garante um trabalhador ferroviário.Já na Livração, enquanto espera pelo comboio que vem da Régua, José Pereira, também reformado da CP, não consegue calar a revolta. "No tempo do Salazar, o dinheiro deu para tudo: deu para romper linhas, para construir grandes estações e apeadeiros, para fazer casas aos assentadores, e agora não dá para nada? Só dá para os grandes empresários?", insinua. No vagar da reforma, José Pereira, residente em Casal de Loivos, aldeia pendurada sob o Pinhão, aproveitou o dia para ir de comboio até Amarante. Na sua vida, não tem feito outra coisa senão andar de comboio. Durante os 37 anos que trabalhou na CP como operário de obras e já depois de se reformar, percorreu milhares de quilómetros. Encantou-se com a paisagem vinhateira do Douro. Percebeu melhor a natureza granítica do caráter transmontano ao "atravessar aquelas serras" na Linha do Sabor. Derreteu muitas vezes com os calores do Pocinho e refrescou-se outras tantas na luxuriante Linha do Tâmega.Entre Amarante e Livração são apenas 13 quilómetros, mas neste pequeno trajecto está ali quase todo o Minho: o rio, as montanhas, o povoamento disperso, a terra retalhada e murada, os campos de milho, os lameiros e as videiras do vinho verde, encavalitadas em choupos ou em ramadas, bordando as propriedades e os caminhos. São apenas 13 quilómetros, mas chegam para deixar lá os olhos e a promessa de voltar de novo, para mais uma viagem. São 13 quilómetros que uma velha automotora demora 25 minutos a percorrer, à média de 35 quilómetros por hora.O tempo parece que andou mais depressa no Baixo Tâmega. As estradas e, mais recentemente, a auto-estrada redesenharam a geografia da região e, aos poucos, as populações, antes estabelecidas ao longo da linha ferroviária, procuraram outras paragens, afastando-se do comboio. A CP nada fez para as chamar de novo. Limitou-se a manter a linha transitável. Daqui ao prejuízo foi um pequeno passo. Do prejuízo à ordem para fechar foi outro. Aconteceu assim com a Linha do Sabor, com o troço Pocinho-Barca de Alva, na Linha do Douro, e com os troços Vila Real-Chaves, na Linha do Corgo, e Mirandela-Bragança, na Linha do Tua. Foi assim também com o troço Amarante-Arco de Baúlhe, na Linha do Tâmega, encerrado em 1990. A CP fechou a linha, mas deixou um museu como recordação em Arco de Baúlhe. Pelo meio, abandonou estações e apeadeiros. Um dia ainda se há-de fazer o inventário do património ferroviário que a CP deixou destruir em todo o país e, então, alguém irá corar de vergonha. Mas, já se sabe, ninguém pagará por isso, a não ser a memória de um povo que, durante muito tempo, dependeu quase exclusivamente do comboio; um tempo que, no caso da Linha do Tâmega, não é muito distante. Lurdes Pinto tem 30 anos e ainda se lembra dos dias em que a CP tinha que triplicar as carruagens. "Nos dias de praça [mercado] em Amarante, era uma confusão. O comboio andava sempre cheio", recorda.Agora, duas carruagens chegam e sobram. Diariamente, entre Amarante e Livração, há, nos dois sentidos, 17 comboios. Segundo alguns funcionários da CP, cada composição levará em média 10 passageiros (na viagem que o PÚBLICO efectuou, numa terça-feira, às 13h35, seguiam 17 pessoas). Os números que a administração da CP forneceu à Câmara de Amarante são piores: em média, viajam diariamente naquele troço da Linha do Tâmega 50 passageiros. A facturação mensal é de 625 contos, entre bilhetes e passes. Face aos prejuízos, no passado dia 7 de Fevereiro, a CP acabou com a venda de bilhetes na Estação de Amarante, convertendo-a, na prática, em mais um apeadeiro. O PCP local não esperou para agir: entre protestos, colocou uma tarja no local com o grito "Estação sim, apeadeiro não!".Mas a CP não recuou e os bilhetes são agora vendidos pelo revisor no interior da automotora. "É uma situação de que eu não gosto e à qual me oponho, porque pelo menos deveríamos ter sido avisados", foi a primeira reacção do presidente da Câmara de Amarante, o socialista Armindo Abreu. Em declarações ao PÚBLICO, o autarca mostrou-se mais compreensivo com a decisão da CP. "A receita do comboio não dá para pagar a um funcionário", diz.Em Amarante, não falta quem veja no encerramento comercial da Estação de Amarante um primeiro passo da CP para fechar a Linha do Tâmega. Armindo Abreu afasta este cenário. "A exploração é extremamente deficitária e este troço não cumpre uma função social clara", mas "a linha vai manter-se em funcionamento", assegura.