A família do documentário
Foi preciso esperar até ao final dos anos 80 para ver nascer uma geração que assume o documentário como vocação exclusiva. A Cinemateca vai mostrá-la com pontos de exclamação e de interrogação. Há um novo documentário português? Há, pelo menos, entre os autores que vão exibir as suas obras até 10 de Abril a sensação que pertencem a uma família diferente da do cinema e da reportagem televisiva.
Em "Cinema Português...?", um documentário de Manuel Mozos, revisita-se a história do cinema português num tom indagador. Será que ele existe?. Manuel Mozos faz avançar as imagens em "fast forward" para se deter nas irónicas palavras do guia desta viagem, o presidente da Cinemateca Portuguesa, João Bénard da Costa, quando diz: "O cinema português nunca existiu."As imagens surgem voluntariamente descontextualizadas, descobrem-se associações entre filmes de que não se suspeitava, mas João Bénard da Costa explica: sempre houve grupos de cineastas ligados estetica e culturalmente; o que nunca houve foi uma "acção de grupo" que permitisse o eclodir, em Portugal, de uma "nouvelle vague". Mas conclui: "Há aqui uma família."Será este também o desafio do ciclo que a Cinemateca Portuguesa inaugura hoje: identificar uma nova geração de cineastas, desta feita no campo do documentário. Como explica José Manuel Costa, vice-presidente da Cinemateca e presidente do Arquivo Nacional de Imagens em Movimento (ANIM), ao título "O Novo Documentário em Portugal" poder-se-ia acrescentar algumas regras de pontuação, nomeadamente "um ponto de exclamação, porque o ciclo pretende afirmar que já existem bases para se falar de um novo documentário em Portugal; e um ponto de interrogação, porque é uma primeira mostra voluntariamente feita sem rigor histórico, para fazer as pessoas interrogarem-se e reflectirem sobre a questão".São cerca de 20 os documentários que até 10 de Abril vão servir como matéria de discussão, e serão outros tantos realizadores, entre os quais Pedro Sena Nunes, Catarina Mourão, Manuel Mozos, Joaquim Pinto e Nuno Leonel, Catarina Alves Costa e Graça Castanheira. Mariana Otero, que gerou polémica com o seu documentário sobre os bastidores da SIC, "Esta Televisão É a Sua", e Pierre-Marie Goulet, que evoca as recolhas de música tradicional feitas em Portugal por Michel Giacometti em "Polifonias", são os únicos "estrangeirados" a integrar a mostra, até porque as suas obras "aproximam-se do espírito de um novo documentário em Portugal", segundo o presidente do ANIM, responsável por uma cadeira de Documentário na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, na Universidade Nova de Lisboa.Há uma geração? "Quisemos voluntariamente dar a isto uma conotação geracional. Não é rigorosamente uma questão de idades, é uma nova atitude em relação ao documentário", afirma José Manuel Costa. "Há de facto pessoas que apostam no documentário, claramente não como uma área de passagem, mas como um objectivo em si, considerando que o documentário é uma área tão fascinante quanto a ficção. Para alguns é até um desafio mais complexo. E isto é uma novidade em Portugal", conclui.É o caso, por exemplo, do cineasta Pedro Sena Nunes (de quem se verão, mais para o fim do ciclo, "Margens", "Entraste no Jogo" e "Fragments Between Time and Angels"), para quem a "relação com a ficção" sempre o deixou "pouco emocionado". Formou-se na Escola de Cinema, no Conservatório de Lisboa, "onde não há tradição e formação documental". Haveria de chegar a altura, num périplo pessoal europeu, de "mais obsessivamente" procurar "a separação entre ficção e documentário" mas também de "esquecer onde é que acaba uma coisa e começa outra". Os seus trabalhos são vibrantes gestos impressionistas - até porque a estrutura de base são sempre retratos de pessoas ou de micro-cosmos - através dos quais conta pequenas histórias, regista "pequenos momentos de intimidade, num processo de partilha que, só ele, permite estar mais próximo da dimensão humana. E para isso é preciso tempo. O documentário é qualquer coisa no tempo, é essa a diferença em relação à reportagem televisiva".Outra das novidades que agora se pretende detectar com este ciclo é, segundo o vice-presidente da Cinemateca, a sintonia da produção documental "made in Portugal" com o que se faz lá fora. Por outras palavras: "Ao longo da primeira parte dos anos 90, houve várias mostras importantes na área do documentário, sentiu-se uma nova vontade do documentário em Portugal, eco de uma grande renovação que o documentário tem tido no cinema europeu dos últimos anos". Para isso contribuíram os apoios financeiros estatais à produção documental, nomeadamente os do ICAM (Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia), que em 1991 criou um programa específico de financiamento para a área do documentário, a que se juntaram as contribuições de várias entidades, públicas e privadas.Por outro lado, ressurgiu entre os difusores e produtores televisivos "uma nova consciência da importância do documentário", a par de uma distinção "mais aguda" entre o documentário e a reportagem (ver caixa). Como diz Catarina Alves Costa, uma documentarista que chegou ao cinema através da antropologia, "a televisão serve para entreter e informar; o documentário serve para contar histórias, utilizando as estratégias estéticas e narrativas do cinema".Mostras como os Encontros Internacionais do Cinema Documental da Amascultura, que têm lugar todos os anos no Centro Cultural da Malaposta, deram uma achega e até o Museu de Etnologia tem alguma coisa a dizer sobre o assunto. "É importante realçar o papel da área da antropologia que, noutros países e noutras épocas, já tinha tido uma relação forte com a produção documental. Em Portugal nem sempre tinha acontecido assim. Mas agora, por via da actividade académica, começou a haver uma relação com esse mundo. É aí que entra o novo papel do Museu de Etnologia, onde estavam depositados há vários anos alguns dos filmes etnográficos de carácter documental feitos em Portugal, e que recentemente começou a ter um papel mais activo, organizando sessões onde se mostram filmes novos e antigos", sublinha José Manuel Costa.Pedro Sena Nunes refere também a importância dos Encontros Internacionais do Cinema Documental - e evoca a memória do seu director, Manuel Costa e Silva - que passou a ser um ponto de encontro de "uma série de pessoas diferentes, que vinham da comunicação social, da etnologia e da sociologia" - algumas das quais têm agora filmes neste ciclo.Que passado de imagens é que poderia estar acessível a estas pessoas? Catarina Alves Costa (de quem se verá "Senhora Aparecida" e "Swagatam", documentário recentemente premiado num festival do filme etnográfico em Paris) diz que há, obviamente, o património constituído pelos filmes de António Campos, há "Jaime", de António Reis, há "Belarmino", de Fernando Lopes. "Mas não foram esses filmes que me inspiraram. O que é comum neste grupo de pessoas, e o que resulta das conversas e discussões que temos, e dos filmes que vemos, é estarmos todos a trabalhar temas mais ou menos intimistas. E não olhar o documentário como uma ideia de arquivo de qualquer coisa que está a desaparecer mas como qualquer coisa que filma um presente imediato. É uma cultura comum que passa, por exemplo, pela visão de documentários que o canal de televisão Arte exibe, uma programação que acompanha o que se está a fazer neste momento em outros países".José Manuel Costa considera que "nunca houve em Portugal uma verdadeira tradição documental consistente, no sentido de um movimento, de um conjunto de filmes coerentes de pessoas que apostaram essencialmente no documentário". A culpa é remetida para a falta de apoios institucionais como os que despontaram em Inglaterra logo na década de 30, altura em que o documentário ganhou autonomia como género. "Em Portugal não houve, até muito recentemente, uma única instituição que tenha apostado continuamente no financiamento de documentários, nem houve condições até 1974, por via da censura, para haver uma produção independente, de intervenção social, com uma relação directa muito forte com a evolução política e social. Isso impediu a possibilidade de nascerem movimentos que estivessem em sintonia com o que se estava a passar lá fora, apesar de ter havido obras individuais que foram importantes", diz José Manuel Costa.O 25 de Abril trouxe a vontade de descer à rua com as câmaras e os microfones, mas o atraso de Portugal em relação à evolução do documentário internacional é denunciado por "uma concentração de etapas muito grande, em que quase não houve tempo para digerir a pouco e pouco, como noutros países", os níveis históricos e etapas por que o cinema e, sobretudo, o documentário haviam passado desde os primeiros anos da década de 60. E, segundo José Manuel Costa, a falta de uma tradição continuou a fazer-se sentir, já que alguns dos mais interessantes filmes feitos então "foram, muitas vezes, misturas declaradas de documentário e ficção". E, ao contrário do que os mais puristas possam pensar, "não há nenhum filme que não tenha uma componente documental e uma componente de ficção. São duas faces da mesma moeda. O que acontece é que, em termos de produção, há, na génese dos filmes, uma aposta maior numa área ou noutra", defende José Manuel Costa. Foi preciso esperar até ao final dos anos 80 para ver nascer uma geração que assume o documentário como vocação exclusiva, vendo nele "um desafio estético diferente na maneira de conceber a imagem e o trajecto do olhar, um trajecto que incorpora, voluntária e explicitamente, o lado incontrolado do real". "É um grupo de pessoas que está a fazer um trabalho comum, que conversa e troca ideias entre si. Se isto corresponde a uma vaga estética, não sei. Ainda é cedo, está tudo a acontecer", conclui Catarina Alves Costa. É essa geração que, a partir de hoje, vai passar pela Cinemateca. Com pontos de exclamação e de interrogação.