Uma festa, para Fernanda Montenegro
A actriz Fernanda Montenegro é um caso à parte. Mede-se em dezenas de milhões o número de brasileiros que nunca assistiram a um filme nacional - ou puseram os pés numa sala de cinema - mas que conhecem e admiram Montenegro. É o poder das telenovelas. A indicação da veterana brasileira para o Óscar de Melhor Actriz insufla - ao contrário do filme de que é protagonista, "Central do Brasil", nomeado para Melhor Filme Estrangeiro - o patriotismo. A disputa em que a actriz hoje se vai ver envolvida não é contra outras "estrangeiras" mas contra algumas das mais brilhantes "loiras maravilhosas" - como ela própria se referiu às suas concorrentes. É apenas a segunda vez que uma actriz da América Latina é nomeada para o Óscar (a primeira vez aconteceu em 1987 com a argentina Norma Aleandro). Convém recordar que só uma vez um intérprete que não falava inglês levou para casa o Óscar. Foi Sophia Loren, em 1962, por "La Ciociara".Uma eventual vitória de Fernanda Montenegro, 69 anos, teria o gosto de um triunfo do terceiro-mundo moreno e miserável sobre o "glamour" louro e bem nutrido. São fantasias do imaginário colectivo a que o Óscar se presta.Fernanda Montenegro, cuja versatilidade lhe rendeu a alcunha de "cara de borracha", não se sente muito à vontade no papel de vingadora do terceiro-mundo e, desde já, avisa que vai chegar à cerimónia como quem chega a uma festa, não a uma competição. Dizia ela há dias, citada pela agência Reuters: "Se eu ganhar, no Brasil vai ser como o Carnaval... ou como o Campeonato do Mundo de Futebol. Só tenho a dizer isto aos brasileiros: 'Acalmem-se'!". Ambiente de "Copa do Mundo" é como muitos resumem o estado de espírito no Brasil, este domingo, na contagem decrescente para os Óscares."Central do Brasil", de Walter Salles Jr., tem sobre os seus compatriotas anteriormente nomeados ("O Quatrilho", de Fábio Barreto, e "O Que é Isso Companheiro?", de Bruno Barreto) uma indiscutível vantagem: independentemente do que a Academia decidir, nenhum dos filmes anteriores foi tão visto (um milhão e meio de espectadores) e tão discutido pelo público brasileiro.Estreou no Brasil com perfil de unanimidade - era "feio" não gostar de "Central do Brasil". Aos poucos, houve quem, primeiro timidamente e depois sem papas na língua, começasse a apontar defeitos. Hoje o país está dividido entre os que o consideram uma obra-prima e os que o execram. A obra de Walter Salles Júnior escapou, assim, da maldição decretada pelo falecido dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues quando disse que "toda a unanimidade é burra".O curioso é que "Central do Brasil", um "road movie" pelo arruinado nordeste brasileiro em que uma mulher (Fernanda Montenegro) tenta ajudar uma criança, orfã de mãe, a encontrar o pai, parece ter tocado o mesmo nervo dos que o amam e dos que o odeiam: o orgulho patriótico. Entre os que o odeiam estão aqueles que o consideram uma peça de difamação do Brasil, país que não se reduz à miséria que o filme documenta.Os que o amam vêem nele uma demonstração da capacidade brasileira de atingir a universalidade e o reconhecimento internacional (o filme venceu o Urso de Ouro de Berlim no ano passado e despertou tamanho interesse internacional que por causa dele muitas instituições, como o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, começaram a fazer ciclos de cinema brasileiro). Walter Salles e o seu filme serão assim as figuras redentoras, os heróis reencontrados, de uma cinematografia, e de um país. Apesar de ter produzido 24 filmes em 1998, o "renascimento" do cinema brasileiro e o plano governamental de ajuda a unidades de produção privadas com um programa de redução fiscal - depois da "morte" decretada, em 1990, com a extinção da empresa estatal Embrafilme - vão enfrentar nuvens negras com as sequelas económicas da desvalorização da moeda. Sem esquecer que a recuperação da produção não encontrou ainda um plano à altura para a exibição - muitos filmes estão eternamente à espera de distribuição.Desde as suas origens - mais acentuadamente a partir do movimento "Cinema Novo", nos anos 60, com expressão máxima na obra do cineasta Glauber Rocha - o cinema brasileiro tenta afirmar-se como referência na discussão sobre a Nacionalidade. O país tem sido a principal e mais constante personagem dos filmes e, seja por méritos ou deméritos, "Central do Brasil" é, de longe, aquele que mais acesas discussões gerou sobre os orgulhos e as vergonhas dos brasileiros.Quanto às hipóteses de vitória, o cepticismo, esse sim, é unânime. A nomeação de filmes brasileiros para o Óscar está a tornar-se uma rotina mas tão rotineira quanto a preferência, na hora da verdade, pelos outros concorrentes. Dificilmente será diferente com "Central do Brasil". Até porque o principal concorrente é "A Vida é Bela", de Roberto Benigni, que foi nomeado para Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro. Como ninguém acredita que o filme italiano ganhe o Óscar principal, considera-se que a estatueta de Melhor Filme Estrangeiro vai parar às suas mãos.