Quem com chumbo mata...
Muita da água bebida em Portugal vem de albufeiras. E sobre estas chovem, todos os anos, quilos de chumbo dos tiros dos caçadores. Altamente tóxico, este metal contamina tudo o que toca e chega à mesa dos portugueses, envenenando-os. A substituição dos cartuchos é difícil e preocupa vários países. Por cá, o Governo promete ir pensar no assunto.
Não é só quando o tiro acerta que o chumbo mata. Todos os anos, mais de 150 toneladas de projécteis são depositados nos rios e albufeiras de Portugal, causando gravíssimos danos ambientais. A intoxicação pelo chumbo - o saturnismo - afecta anualmente muitos milhares de aves aquáticas, com efeitos transmissíveis aos apreciadores de carne de caça. Ninguém sabe ao certo quanto chumbo se dispara em Portugal, mas um simples cálculo permite conclusões surpreendentes. Estimando que existem 20 ou 30 mil caçadores de patos e que cada um faz dez dias de caça por época, usando vinte cartuchos por dia, é possível afirmar, sem risco de exagero, que são disparados 5 milhões de cartuchos por ano. Cada cartucho de chumbo 4 ou 5, os mais usados na caça aos patos, contém entre 200 e 260 esferas, totalizando entre 32 e 35 gramas de chumbo. Assim, e sempre fazendo as contas por baixo, é possível deduzir que todos os anos se abatem sobre as zonas húmidas de Portugal pelo menos mil milhões de esferas, ou seja, cerca de 170 toneladas de chumbo. Os projécteis levam mais de 50 anos a desintegrar-se e, entretanto, vão libertando óxidos e sais muito tóxicos que se infiltram no subsolo e contaminam os terrenos e os lençóis freáticos. "Além disso, em função do pH e de outros factores, os sais de chumbo podem ser absorvidos, com menor ou maior facilidade, pelas plantas", escreve Rosa Guerrero num artigo publicado no último número da revista espanhola "Integral". Guerrero revela que, em Espanha, se disparam anualmente cerca de 5000 toneladas de chumbo - cinco por cento do total mundial - causando a morte por intoxicação de 30 000 a 50 000 aves aquáticas. É uma vizinhança inquietante, dado que, devido ao carácter migratório dos patos, se trata de um problema sem fronteiras. A intoxicação só se processa através da ingestão dos chumbos pelas aves, e não através dos ferimentos. Os chumbos depositados no fundo dos rios ou albufeiras são bicados pelas aves aquáticas, que procuram pequenas pedras que armazenam no seu estômago muscular, onde cumprem a função que têm para nós os dentes. O chumbo ali permanece duas a quatro semanas, o tempo que os ácidos estomacais levam a dissolvê-lo, e é absorvido pelo sistema sanguíneo e depositado em órgãos vitais, como o fígado, os rins e os ossos. Estudos realizados pelo International Wildlife Research Bureau (IWRB) indicam que a intoxicação pelo chumbo é muito mais frequente nos patos mergulhadores, como as negrinhas e os zarros, do que nos patos d superfície, como as marrequinhas e os rabijuncos. A ingestão de um simples bago de chumbo pode bastar para matar um pato e causa-lhe, no mínimo, graves danos. Numa lenta agonia, as aves intoxicadas perdem a capacidade de se alimentar e de voar, e arrastam-se durante dias e até semanas de grande sofrimento. Apresentam sempre problemas neuromusculares que lhes entorpecem o vôo e atrasam as reacções, tornando-os mais vulneráveis aos predadores, incluindo o homem. Como os efeitos são transmissíveis aos consumidores de um animal doente, o saturnismo é causa de intoxicação com forte incidência nas aves de rapina que deles se alimentam, incluindo espécies protegidas como a águia imperial ibérica. Embora os apreciadores de carne de caça geralmente a considerem mais saudável, os comedores de pato bravo superam muitas vezes os níveis de ingestão tolerados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). No caso de, inadvertidamente, engolirem um bago, arriscam-se ainda a uma apendicite aguda. Nos últimos anos, a crescente consciência para os perigos que a toxicidade do chumbo representa para a saúde pública e para o ambiente têm levado à proibição ou controlo do seu uso em múltiplos artigos de consumo corrente, das tintas aos combustíveis, passando pelo papel para mortalhas. Nos projécteis, a substituição do chumbo por outros metais não é uma ideia nova. Nos Estados Unidos, o uso do chumbo na caça em zonas húmidas foi proibido em 1991, depois de, no ano anterior, o saturnismo ali ter morto cerca de três milhões de patos e gansos. Actualmente já se fabricam "chumbos" de caça em aço, estanho, bismuto e tungsténio. Na Grã-Bretanha e países nórdicos os mais populares são os de estanho, embora os de aço sejam mais consumidos nos Estados Unidos e Canadá. Há oito anos já, um "workshop" do IWRB concluíu que "as cargas de projécteis de aço podem ser usadas tão efectivamente para caça a aves aquáticas como o chumbo, se os caçadores fizerem ajustamentos às diferenças destes dois tipos de munições". As despesas decorrentes, aliadas ao preço mais elevado dos outros cartuchos, mantém os caçadores fiéis ao chumbo nos países onde isso ainda é permitido, como Portugal e Espanha. Entre nós, aliás, não se encontram no mercado de munições quaisquer alternativas ao chumbo.Embora João Capristano, num artigo publicado pelo Correio de Caça em 1994 se tenha proposto dar o "pontapé de saída para uma alteração da legislação relativa ao assunto", cinco anos depois o projecto lei de Rosa Albernaz nem sequer menciona a questão do chumbo. Para ambientalistas no Alentejo, onde as problemáticas ligadas à caça se colocam com particular acuidade, esta omissão é tão grave quanto injustificada, considerando a vastidão dos estragos e a disponibilidade de soluções. À falta de números nacionais, as estatísticas americanas, citadas por Capristano, indicam que, em 1976, o saturnismo matou 2 a 3 por cento do total dos efectivos de aves aquáticas.