Os amigos cantores de Ray Brown
"Sem ele, o bebop teria tido mais dificuldade em definir o lugar do contrabaixo; sem ele, a arte do trio de piano não teria entrado, com tanta confiança, no estado adulto; sem ele, milhares de solistas teriam suado mais tempo à procura do tempo. Com ele, seja na rua do bebop seja em casa do swing, a alma das notas vale tanto quanto as notas da alma".Na hora do regresso a Portugal de Ray Brown, não sinto necessidade de retirar uma palavra ao que ficou escrito num PÚBLICO de há quatro anos, para celebrar a estreia portuguesa do seu trio no Estoril Jazz de 1995. Esta noite, num concerto único no Casino da Póvoa de Varzim (desta vez o do Estoril deixou Lisboa musicalmente às escuras), Ray Brown recria parcialmente o último título da série discográfica "Some of My Best Friends Are...", que vem gravando para a Telarc. Das seis vozes participantes em "Some of My Best Friends Are Singers", apenas três viajam até à Póvoa: Diana Krall (que no mercado português basta para encher uma sala), Nancy King (cujo nome não tem credenciais entre nós) e o único homem chamado a estúdio, Kevin Mahogany (que, por coincidência, também subiu ao palco do Estoril Jazz de 95). De fora ficam Dee Dee Bridgewater, Etta Jones e Marlena Shaw, havendo também a notar a substituição no trio de Ray Brown do baterista, com Karriem Roggins no lugar do excelente Gregory Hutchinson, mantendo-se imutável o piano de Geoff Keezer.No jazz, quando se pensa nos direitos e deveres de um contrabaixo, pode pensar-se em Ray Brown (n. 1926, Pittsburgh, Pensilvânia): alicerce inabalável da respiração colectiva, mestre dos volumes e colocação das notas, cavaleiro imbatível de todos os tempos, fábrica de swing. A grandeza da sua história está feita há muito tempo. E também aqui volto à minha própria memória: "Ray Brown é um horizonte permanente - herdou a Rua 52 das mãos de Oscar Pettiford; deu terra firme aos voos da big band de Dizzy Gillespie dos anos quarenta, a primeira a falar sem atropelos a linguagem bopper; encorpou a voz de uma lady chamada Ella Fitzgerald, que por acaso foi sua mulher; foi um dos pilares do JATP e sócio pré-fundador do Modern Jazz Quartet; ajudou a plantar a grandeza do trio de Oscar Peterson; foi o escolhido por Duke Ellington para recriar os seus duetos com Jimmy Blanton; dirige há largos anos o seu próprio trio, com a mesma mestria com que ajudou a navegar os trios alheios. E quantas vozes, interrogadas sobre a sua arte, não definiriam a felicidade como a companhia do seu contrabaixo?"Não admira, por isso, que entre os muitos amigos de Ray Brown haja tantas cantoras: tocou com e para as maiores, Billie, Ella, Sarah; esteve ao lado de Anita O'Day; reforçou a carreira de Ernestine Anderson e, no oásis do canto masculino, cumpliciou-se com o esquecido Bill Henderson. Até entre os bluesmen puros e duros deixou fama e proveito, gravando com Big Joe Turner e B. B. King. Nada de mais para um homem que cresceu a tocar com os deuses do bebop, Bird e Dizzy, Powell e Roach.Por respeito pelas minorias, a prioridade dos seus convidados vai para Kevin Mahogany, talvez a única descoberta recente que permite alimentar a esperança de que os homens podem voltar a partilhar o jazz vocal com as mulheres, raínhas e senhoras que governam o reino há largas gerações. Herdeiro da tradição de Kansas City, Kevin, um ex-saxofonista barítono convertido ao canto (igualmente barítono), começou no r&b e desaguou no jazz por influência do Al Jarreau de "Look to the Rainbow". Hoje, na sua voz mora outra tradição, da linhagem de Joe Williams e Johnny Hartman. Apresentado ao mundo por uma editora independente, a alemã Enja, Mahogany mudou-se depressa para a major Warner, onde continua a gravar o seu talento multifacetado, de "crooner" a "scatter", de "blues shouter" a "balladeer".De Diana Krall já Portugal sabe o que pode esperar: uma voz limpa e bem educada, que ama a negritude sofisticada do seu mestre, Nat "King" Cole. E um piano (que talvez venha a usar esta noite) bem sintonizado com o seu canto sedutor. "Ela é capaz de vender uma canção", garante um certeiro Ray Brown. O mega-êxito de Diana faz mais pelo jazz do que menos. Continuo a fazer hoje o que fiz na sua descoberta: a aplaudi-la. Resta Nancy King, mulher de carreira longa de quase 40 anos e fama curta. Coisa que não incomodou Ray Brown quando com ela se cruzou, por acidente de clube, e com ela se entusiasmou, por convicção musical. Entre os seus créditos, Ray, que é perito na matéria, sublinha-lhe a valia do "scat singing", qualidade confirmada na versão discográfica de "Some of My Best Friends Are Singers".Com Ray Brown ao leme e com a tripulação anunciada, dificilmente esta noite o jazz não chegará a bom porto na Póvoa de Varzim.