"Quem diz que sou fascista é um idiota"
Recebe-me com a cortesia de um cavalheiro antigo, e os modos delicadamente afáveis de um homem marcado por esmerada educação. O registo da voz é claro, metálico, bem timbrado. Move-se com extrema presteza para quem tem 84 anos. O raciocínio é límpido, rápido. A frase é imperativa, por vezes cortante, sempre sólida, bem construída na locução. Um homem de outro tempo, penso agora. E também penso: fazia-o mais alto, sei lá porquê?, fazia-o arrogante, fazia-o intempestivo, fazia-o insolente. A insolência e a arrogância intempestivas de quem se habituou a mandar e a gerir destinos. Surge-me uma pessoa de meã estatura, jovial, sorridente, olhar de corte biselado, uma espécie de felino com um instinto subtil e seguro. E um gosto acentuado pela ironia, pelo sarcasmo. Recusa a cultura tecnocrática. Detesta o liberalismo. Não acredita na redenção de um pusilânime. Defende que Portugal estava incumbido de um papel histórico, que tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética impediram de realizar.
Kaulza de Arriaga fez da sua vida um friso, no qual se acentua uma pessoal visão do mundo. Não desvia opiniões, não vacila quando qualifica aqueles que entende falhos de carácter e de coragem. Diz: "O Spínola não era grande coisa, mas o Costa Gomes é pior!" No balanço dos factos e no varejo dos homens, aprendeu que a condição humana está cativada de ritos, de convenções e de preconceitos. E, também, que a História não é apenas escrita pelos vencedores: os vencidos têm sempre uma palavra a dizer. Exactamente porque são as grandes sombras de todas as grandes tragédias.[Numa das paredes, um rectângulo espelhado com a imagem de Franco em alto contraste. Lá está, também, o apelo à virilidade, à coragem e à grandeza de Espanha, na reprodução de um discurso do ditador. E uma data funesta para os franquistas: 20 de Novembro de 1975. A efeméride da sua morte. Nas estantes, lembranças de África, retratos de família, livros. O general manifesta grande admiração por outro general: De Gaulle, cuja glória entende corresponder à imponência de um destino singular. E lá estão os volumes de memórias do militar que resgatou a honra da França. Volumes que costuma ler e reler, detidamente, com mão cuidada e diuturna atenção. Diz: "Foi um homem do tamanho do século, num século de titãs." Conto-lhe: "O Claude Roy escreveu, uma vez, sobre De Gaulle: 'A pátria está-lhe grata, a literatura é-lhe devedora, a República tem de se acautelar.?" Ri com gosto: "Excelente definição. Mas não se me aplica." Mora, há quarenta anos, na avenida João XXI, casa alugada, bela, ampla, mobilada com gosto e discrição. Oferece-me chá, oferece-me um álcool. Tudo isto sem resultar nada de enfático ou de pretensioso. Dirá: "Sou contra os extremismos. Os extremismos, aos quais são inerentes processos coercivos e agressivos, conduzindo, geralmente, à violência e ao crime, são, do ponto de vista moral e humano, ilegítimos e, em absoluto, condenáveis e inaceitáveis." E eu: "Considera-se um democrata?" Ele: "A democracia pluralista é o melhor sistema que a imaginação dos homens produziu e pôs em vigor."][Cinco filhos, oito netos. Mostra-me retratos da família. As frases que diz agora apoiam-se mais em calor do que em ideias, mais em efusão do que em doutrina. "Mas a família pertence aos fundamentos daquilo que sempre defendi." Discreteia sobre África. Fala do tempo quase imóvel, da doçura dos poentes, da beleza estonteante das paisagens. "Agora, leio, escrevo, reflicto." Amigos e inimigos são unânimes: "O Kaulza é um obstinado, é um teimoso; mas é um homem de carácter e inteligentíssimo." Costa Gomes é um dos que sublinham estes traços da índole do seu antigo companheiro de armas e de amizades. Ergue-se do sofá onde se sentara para este diálogo em público. Diz: "Nós podíamos, em África, ter dado outra feição à História."][No ano de 1955 estava em lua-de-mel. Salazar telefona-lhe: "De avião, já, para Lisboa!" Diz a Salazar que acabou de casar-se, que está em viagem de núpcias. Mas a pátria não admite intervalos, e a História é uma deusa exigente. "Apanhei o avião: tinha sido nomeado para o Governo, e no Governo servi, durante sete anos." Kaulza de Arriaga entende que a obrigação moral não pressupõe outra vontade além da que é determinada pela educação, pelo conhecimento do bem e do mal, e pela acumulação de experiências. Como um centurião, ele sabe muito bem que o poder de comando, de que dispôs, transformou-o numa personagem política, intimamente ligada a uma, por vezes dramática, dimensão histórica. Acompanha-me ao elevador. Sorri. "Podia ter sido. Mas não quis. Exactamente porque a coacção é exterior ao direito. E o valor supremo, a pátria."]