Discurso de António Guterres aos entusiastas dos Estados Gerais
Caras amigas, caros amigos:Gostaria que este nosso reencontro de hoje fosse mais do que a comemoração nostálgica da assinatura, há quatro exactos anos, do Contrato de Legislatura, que culminou o processo dos Estados Gerais e os transformou num compromisso político.Não é que haja qualquer motivo de vergonha ou embaraço. Pelo contrário. Todas as linhas essenciais do Contrato foram vertidas no programa eleitoral do PS e, depois, com a vitória, no programa do Governo. E julgo poder dizer que a acção deste conseguiu cumprir várias metas. Como afirmei, há precisamente quatro anos, e não me tenho cansado de repetir desde então, a nossa ambição era que a passagem pelo poder deixasse uma marca, na política e na sociedade portuguesas, uma marca própria, que exprimisse a nossa vinculação básica à consciência social e representasse um ponto de não retorno. Ora, parece evidente que já não voltaremos atrás, independentemente sequer de saber quem ocupará o próximo Governo, em múltiplos domínios da nossa vida colectiva: ninguém conseguirá colocar em causa o direito a um rendimento mínimo garantido, ninguém tolerará mais que uma obra de engenharia possa valer mais do que um património cultural de valor universal, ninguém ousará voltar a defender que os cargos intermédios de direcção na administração pública sejam isentos de concurso, ou que a educação básica possa ser preterida, ou que o associativismo dos polícias deva ser recusado, ou que seja esquecida a paridade na representação política. Nós mostrámos que não era preciso ser-se arrogante e autoritário para se exercer a autoridade. Pacificámos o sistema educativo. Explorámos até ao limite as virtualidades da concertação. Invertemos a derrapagem financeira da Segurança Social. Clarificámos o financiamento da formação profissional. Pusemos a investigação científica e a sociedade da informação no centro da agenda pública. Conduzimos uma política macro-económica de estabilização e crescimento, atenta às necessidades sociais e ao emprego, mas cumpridora das regras indispensáveis para a União Monetária.Como vêem, não reclamo nada que não tenha directamente a ver com as políticas que desenvolvemos: nem o sucesso da Expo, nem o Nobel de Saramago, nem as inaugurações de obras em curso. Embora deva dizer que assumo, como qualquer político, a continuidade e a responsabilidade do Estado e, portanto, respondo por tudo o que recebi, vantajoso ou negativo.A questão principal, caras e caros amigos, é, todavia, outra. A área política da Nova Maioria viveu, pela primeira vez na história da nossa democracia, uma experiência bem sucedida de governação. Ainda que em maioria relativa, desempenhámos o mandato até ao fim e fizemo-lo com resultados que todos os indicadores de avaliação definem como globalmente positivos. Também este é um ponto de não retorno na esquerda portuguesa.Vós seríeis a última das audiências disponíveis para o conformismo e a autocomplacência. Sei que muitos sentem que fizemos pouco. Não ignoro que alguns protagonistas dos grandes debates de há quatro anos já nem aqui se encontram, desiludidos ou desencantados. E é também, ou sobretudo, disso, que quero agora falar.Nós não prometemos a revolução, porque não acreditamos nela. Não defendemos a grande reforma, conduzida de cima para baixo, porque não se adequa à complexidade das sociedades presentes. Defendemos, isso sim, mudanças, quer dizer, intervenções estratégicas e coerentes nos pontos críticos dos sistemas. Algumas, não as implantámos porque fomos impedidos. Mas outras, porque não tivemos rasgo suficiente; e outras ainda, porque nos descobrimos divididos, acerca delas.Como faço questão de olhar para o futuro, é um novo impulso que em vós procuro. Um impulso de mudança, que faça avançar, desafiando os interesses instalados que nos travam; e um impulso de aprofundamento ideológico e programático, desafiando os estereótipos que paralisam. Não nego que o que fizemos, em matéria de reforma fiscal, de gestão da saúde e de organização da justiça, foi pouco, face às nossas próprias expectativas e à magnitude dos problemas. Mas, para prosseguir, é preciso decisão, e é um impulso de decisão que vos peço. Sei que ainda não encontrámos uma resposta cabalmente satisfatória aos dilemas que nos sacodem, por exemplo entre a generalização e a eficiência do sistema escolar, ou entre o modelo social europeu e a solidariedade entre gerações, ou quanto aos meios de combate à toxicodependência. Mas, para prosseguir, é preciso debate sem barreiras nem preconceitos, e é a liderança desse debate que vos peço.Finalmente, minhas e meus amigos, os Estados Gerais foram a promessa de uma nova relação entre partidos e cidadãos. Estou contente com a dedicação e o entusiasmo do meu partido. Não estou contente, porém, e fui o primeiro a dizê-lo, com o que o meu partido partilha de pior com os outros partidos de poder, nacional ou autárquico, que é a tentação de colonizar o Estado, de preferir a subordinação clientelar ou as afinidades de seita à competência e ao sentido de serviço. Não devo, nem quero, pôr tudo no mesmo saco, rendendo-me a uma campanha excessivamente demagógica; mas peço-vos também auxílio para ir gradualmente mudando as coisas. Esse auxílio só pode materializar-se de uma maneira: é aumentarem o vosso nível de empenhamento e participação no espaço e na vida pública. Por cada pessoa com ideias que se ausenta ou desiste, entram dois compadres. Só posso combater o compadrio se tiver alternativas.Não insinuo, pois, obediência ou hipocrisia. Na proposta como na vigilância, preciso é de sentido crítico.O vosso,António Guterres.