Quando a televisão era nossa
Os habitantes da pequena ilha do Corvo tinham, a meio dos anos 80, uma pequena televisão artesanal que transmitia a programação da RTP, enviada em cassetes por amigos do médico da terra residentes em Lisboa. Ontem, pela primeira vez, os corvinos ficaram a saber o que é receber o sinal da televisão do Estado em directo.
Ligar a televisão e ver o Telejornal apresentado por José Rodrigues dos Santos, assistir à transmissão de um grande prémio de Fórmula 1 na RTP ou ao sorteio dos números do Totoloto é um gesto normal no quotidiano de milhares de portugueses e nem seria notícia não fosse o facto de tal só ser possível desde ontem nas ilhas do Corvo e das Flores. É certo que já existia a RTP/Açores, um canal regional com emissão autónoma, mas o sentimento discriminatório sempre foi elevado e acentuou-se ao longo dos últimos dois anos, altura em que os "irmãos" açorianos das outras ilhas passaram a ter acesso a ambos os canais. Isto apesar da SIC e TVI continuarem a ser uma miragem na própria cidade de Ponta Delgada, a maior do arquipélago com 60 mil habitantes, e onde as privadas só estão disponíveis para os afortunados com capacidade financeira suficiente para a TV Cabo. Sujeitos à "ditadura da insularidade", longe de Lisboa e do país, nem por isso os corvinos deixaram de combater como podiam o isolamento. Em Vila do Corvo, 350 habitantes numa ilha com 20 quilómetros quadrados, há recordes que são motivo de orgulho: a pequena biblioteca municipal ostenta um título impressionante, detém em Portugal um dos maiores índices de utilização. Não foi, por isso, difícil encontrar uma solução para combater a falta de emissões de televisão.Em 1984 florentinos e corvinos nem sequer tinham acesso ao sinal da RTP/Açores. João Cardigos chegou ao Corvo e ficou pasmado com o que viu, habituado que estava ao ritmo de vida em Lisboa. A televisão, ou melhor a falta dela, era uma das principais diferenças. Ainda hoje recorda como naquela altura "se colocavam potentes amplificadores nas antenas para se conseguir ver" o canal regional. Procurava-se o sinal do emissor colocado na Terceira, a muitas milhas de distância, e não se conseguia melhor "do que uma imagem de fraca qualidade a preto e branco". A fragilidade do sistema notava-se com facilidade e "bastava passar uma mota num sítio distante para não se conseguir ver nada", explicou ontem ao PÚBLICO. A solução para combater o problema foi encontrada pelo próprio João Cardigos com a ajuda de alguns amigos da capital. Os conhecimentos em Lisboa permitiram-lhe encontrar quem gravasse em vídeo as emissão do Canal 1 e as enviasse por correio para o Corvo. Na terra montou-se um emissor artesanal - "aquilo nem se podia chamar assim" - que na prática não passava "de um amplificador a funcionar ao contrário". Ou seja, explicou, "estava ligado a uma antena só que não servia para recebe o sinal mas sim para o enviar". O sucesso estava garantido, tinha acabado de nascer em Portugal o primeiro canal privado de televisão, sem publicidade e sem nome, com uma audiência fiel de três centenas de espectadores.A programação base era constituída pelos filmes e telenovelas que iam passando no continente. As cassetes chegavam no fim de cada mês e vários voluntários organizavam o mapa de programas para o mês seguinte, que depois era afixado nos locais públicos da terra, ao lado dos editais da câmara municipal. Os corvinos, e com alguma sorte os vizinhos das Flores nos dias de bom tempo, passaram a dispor diariamente da sua própria televisão.A chegada da caixa que mudou o mundo obrigou a outras alterações. Naquela altura ninguém tinha televisão a cores, eram mais caras e de "pouco serviam uma vez que o sinal da RTP/Açores só chegava à ilha a preto e branco". Uma incompatibilidade com o sistema artesanal de João Cardigos que "era gravado em Lisboa a cores e retransmitido no Corvo de igual forma". A solução foi encontrada novamente junto dos amigos do médico na capital que num desses meses não só enviaram as cassetes como também fizeram chegar a Vila do Corvo duas dezenas de televisões novas a possibilitar a recepção do sinal com cor.Nesta altura já os corvinos se podiam gabar de algumas vantagens sobre a população das outras ilhas, ainda dependentes do acesso único à RTP/Açores, que primava por um atraso substancial em vários programas oriundos de Lisboa. Por exemplo, lembra o médico ao PÚBLICO, "aqui no Corvo chegou mesmo a ser possível acompanhar algumas telenovelas ainda antes delas serem transmitidas no arquipélago". A moderna tecnologia, no entanto, ditou o fimda pequena televisão. As "parabólicas, primeiro, e a chegada da emissão regional da RTP" levaram a que o "nosso canal perdesse algum sentido". Mas que era engraçado, lá isso era.