A lebre e os galgos em corrida de vida ou de morte
Soltam galgos atrás de lebres em campo aberto e reivindicam o direito ancestral de continuar a fazê-lo. Os galgueiros acham que Rosa Albernaz quer proibir a prática, poupando outras muito mais predadoras, para agradar aos ambientalistas sem arriscar mais que os votos dos poucos caçadores a corricão, que muito provavelmente não votariam PS, de qualquer maneira. Menos calculista é a pugna no terreno quando a lebre e os cães disputam a sua corrida de vida ou de morte, seguindo apenas as terríveis regras da Natureza.
Começou pela manhã a inusitada afluência à Herdade da Flor da Rosa, a dois passos das Alcáçovas, onde se disputava a primeira jornada de abertura dos campeonato de Portugal de corridas de galgos a campo, a chamada caça à lebre a corricão.Ao ritmo alentejano vão chegando os carros, com profusão de jipes e atrelados para cães e cavalos, e vão estacionando diante da casa do monte, virados à vastidão da paisagem. Está um glorioso dia de Inverno, cheio de sol, e o ambiente é muito mais de piquenique do que de caçada. Passeiam-se os cães, selam-se os cavalos e trocam-se prognósticos e piadas. Tudo entre amigos, já que toda a gente, mais ou menos, se conhece.A seu tempo, uns vinte cavaleiros vão-se agrupando e descem o declive que se estende até um arroio, lá ao fundo, a uns quinhentos metros. As montadas avançam a passo, sem pressa, seguidas pelo largador, que vai a pé, levando à trela os dois galgos competindo na eliminatória. As provas são disputadas, por dois cães apenas, em cada uma das sucessivas eliminatórias, vencendo o que somar mais pontos em três largadas.Chegados ao fundo do terreno, os cavaleiros alinham-se lado a lado e progridem ao longo do arroio, sempre a passo, com o largador e os dois galgos agora à frente. Vão andando até que, de repente, assustada pela aproximação dos cavalos, uma lebre se levanta e arranca a fugir.Subitamente a modorra rompe-se de tudo se passa muito depressa. O largador corre atrás da lebre, sustendo a custo os cães, a "engalgá-los", até que o juri dê ordem de largada. Este compasso de espera entre o arranque da lebre e a largada dos galgos assegura à fugitiva um avanço de algumas dezenas de metros e permite ao júri identificar alguma "chôcha" que, por estar prenhe ou doente, é deixada ir em paz.À ordem do júri, o largador acciona a trela automática, libertando em simultâneo os dois cães, que disparam atrás da lebre, transfigurados. A determinação predatória é fascinante, mas a lebre, como nas fábulas, tem o engenho que a necessidade aguça. Acossada, é um prodígio de rapidez e astúcia para escapar à cega obstinação dos galgos, que, na maioria das vezes, logra desfeitear. Passada a passada, com uma velocidade espantosa, os cães aproximam-se da presa, mas, quando estão prestes a filá-la, a lebre muda de direcção com incrível agilidade, deixando para trás os seus perseguidores.Enquanto decorre a obsessiva perseguição os cavaleiros devem manter-se à distância, só estando autorizados a seguir de perto a correria os donos dos galgos, o cronometrista e o júri. Os três membros do júri trazem à cintura cinco lenços de cor, usados para sinalizar o seu arbítrio. Assim, levantando o lenço branco ou o vermelho, atribuem a "chegada" ao cão com a coleira dessa cor, mas se exibirem antes o verde estão a pronunciar-se pelo empate. O lenço amarelo dá por nula uma lebre, e o preto, erguido junto com a cor de um dos cães, desclassifica-o "por desinteresse".Em conformidade com esses sinais, os juízes atribuem pontos aos cães, apurando como vencedor aquele que mais pontuar. Quando a lebre, por pressão de um galgo, muda a sua trajectória mais do que um ângulo recto, consideram que o cão obteve uma "pancada", mesmo que não chegue a ocorrer contacto directo, e atribuem-lhe dois pontos. Se a mudança de trajectória não exceder o ângulo recto chama-se "toque" e vale um ponto ao galgo.As ultrapassagens dos galgos entre si, os "passes", também pontuam, bem como a velocidade e o avanço à chegada à lebre. Quando lhe chegam. Segundo os galgueiros, setenta por cento das lebres corridas sobrevivem ao contacto com a modalidade. "Velocidade, resistência, moral e destreza" são os factores de vitória apontados pelos regulamentos e os praticantes frisam que o objectivo não é a morte da lebre, que vale no máximo três pontos e pode nem sequer pontuar.Pontuável ou não, a morte é instantânea, tão fulgurante como a corrida. Em pleno sprint, o galgo enfia o focinho ponteagudo debaixo da lebre e atira com ela ao ar, abocanhando-a na queda com incrível destreza. Entretanto, já o outro cão acorre e se atira à lebre, disputando-a ao primeiro encarniçadamente, até que os homens venham apartá-los e arrancar-lhes a presa.As mais das vezes, porém, a lebre logra escapulir-se, metendo entre penedos ou na toca de um coelho, deixando os galgos para trás, loucos de frustração.Passado que foi o frenesim da corrida, que geralmente não excede dois minutos, tudo regressa ao ritmo de uma passeata campestre com cães e cavalos. Trocam-se os galgos, já que cada animal não pode permanecer mais de meia hora à trela e deve descansar outro tanto entre corridas, e tudo recomeça.Lá em cima, junto à casa do monte, os espectadores acompanham o desenrolar das corridas a uma distância que reduz cães e lebres a pontinhos fugidios no verde dos campos e não deixa entrever o vermelho do sangue. Ao longe, a adrenalina da caça dilui-se numa animação de festa ao ar livre, onde os "agrários" e a sua gente se reúnem para reatar costumes que a Revolução fez caducar. As senhoras conversam, sentadas nos 4x4, as crianças brincam pelo campo ali em volta e os homens, agrupados em volta do bar móvel, comentam as corridas e conversam de cães e cavalos.Manuel Calejo Pires, advogado e político eborense, faz as honras da casa, como presidente da Federação de Galgueiros de Portugal e proprietário da herdade. Praticada exclusivamente em zonas de regime cinegético especial, a caça a corricão é mais lucrativa para o proprietário do couto que outras modalidades venatórias mais plebeias, porque todas as lebres corridas são pagas, sejam mortas ou não.Embora rejeite as acusações de "elitismo", Calejo Pires considera que os galgueiros são, em geral, pessoas muito mais conscientes das questões ambientais que o comum dos caçadores, e que, ao contrário de muitos destes, não buscam o ganho material. Pelo contrário. A prática da caça a corricão implica avultadas despesas na compra, criação e treinamento de cavalos e cães, o que limita a sua prática aos sectores mais favorecidos da sociedade alentejana. Contudo, de Lisboa e do resto do país também afluem praticantes ao Alentejo, atraídos pelo sol, pela vida ao ar livre e pelas grandes planuras sem muros à vista, onde podem largar os galgos.O produtor de cinema Paulo Branco cria cavalos e cães, mas não espera ganhar, já que, segundo explica, a sua cadela "é lenta como um filme de [Manoel] Oliveira". Melhor sorte pode esperar João Moura, o criador de galgos mais proeminente do país, que também compete em Espanha, onde a modalidade tem muito mais projecção. Nos últimos três anos venceu dois campeonatos de Portugal, com a cadela Ronda em 1996, e com a Raquel em 1998.Tratados com honras de decanos são os irmãos Torres, que assistem a corridas "há setenta anos". Eram eles que organizavam a prova Diana, considerada uma das melhores do mundo no género. Disputada por 12 cães ingleses, 12 espanhóis e 12 portugueses, reuniu a nata da modalidade até 1974, quando as profundas transformações que varreram o Alentejo vieram abalar o universo onde podiam acontecer as corridas de lebres. Nos últimos anos, a caça à lebre a corricão vem renascendo com esse mundo, e já se organizam anualmente campeonatos de Portugal desde 1996.Por aquelas bandas, Rosa Albernaz não angaria muitos votos para o Partido Socialista. O seu projecto de lei de protecção dos animais é um dos grandes temas de conversa neste meio que se orgulha das suas "raízes rurais" e se gaba de manter uma relação privilegiada com a natureza. As críticas são múltiplas e variadas, mas toda a gente concorda que não é uma "senhora de Lisboa" que vai "ensinar aos alentejanos como hão-de viver!"Para os aficionados, o reduzido número de lebres abatidas, a ausência de armas e a sua longa tradição deveriam bastar para retirar a caça a corricão da lista de modalidades cinegéticas que Albernaz propõe ilegalizar. Desconfiam que a real intenção seja acabar de vez com todas as formas de caça, começando por proibir as modalidades com menos praticantes, cujos votos perdidos são facilmente compensáveis pelos ganhos entre os ecologistas e os adversários da caça. Para os galgueiros, estes estão a ser enganados pelo projecto de lei, que se ataca uma modalidade que causa danos mínimos à fauna, em comparação com outras toleradas por Rosa Albernaz, cuja proibição custaria muito mais votos ao PS.Se a ideia é essa, não contem com eles, conforme já explicou o presidente da Federação de Galgueiros. Embora reconheça que a protecção dos animais necessita de legislação "mais efectiva e mais moderna", estará radicalmente contra todas as tentativas de acabar de vez com a actividade venatória: "A caça sempre existiu", diz ele, "e há-de existir sempre".