Reavaliar Augusto Machado
Noventa anos depois da sua estreia, a comédia lírica "La Borghesina", de Augusto Machado, sobe de novo ao palco do São Carlos, com um elenco inteiramente nacional. Um valioso contributo para a descoberta da música portuguesa da viragem do século e do compositor que serviu de modelo à personagem do Cruges, em "Os Maias", de Eça de Queirós. Pena que seja só em versão de concerto.
O século XIX, em que a música foi considerada como a mais sublime das artes, é para música portuguesa o século esquecido ou "o século rejeitado" como lhe chamou Paulo Ferreira de Castro na "História da Música Portuguesa" que escreveu em parceria com Rui Vieira Nery. Não porque não tivesse sido cultivada com igual profusão, mas pela simples razão de que não tem despertado a mesma atenção que a dos séculos anteriores. Se excluirmos João Domingos Bomtempo - figura singular no contexto musical português oitocentista -, o resto é quase um imenso deserto, tanto para o público em geral, como para os músicos e musicólogos.As razões do desconhecimento não são apenas práticas - ausência de edições em partitura e em disco, fontes musicais por inventariar -, mas ideológicas, já que a postura da historiografia musical portuguesa perante o século XIX acaba por reflectir o preconceito da "decadência", associado à regressão económica, política e cultural do país. Do ponto de vista musical, a ideia de "decadência" coincide com o "italianismo" que então dominava a vida musical, por oposição aos modelos germânicos, mais valorizados, mas de fraca repercussão entre nós.Face a este panorama, a apresentação no São Carlos de "La Borghesina", a última ópera de Augusto Machado (1845-1924) reveste-se de importância suplementar até porque, ao que tudo indica, Machado encontra-se entre as personalidades mais interessantes da música portuguesa do século passado, quer pelo seu profissionalismo, quer por uma cultura intelectual rara entre os compositores teatrais da época. Pertencendo ao círculo de Batalha Reis e Eça de Queirós, crê-se que tenha servido de modelo à personagem do músico Vitorino Cruges, em "Os Maias" (ver texto).Augusto Machado iniciou os seus estudos musicais em Lisboa com Joaquim Casimiro, Emílio Daddi e João Guilherme Daddi - o pianista que teve a honra de tocar a dois pianos com Franz Liszt quando este actuou em Lisboa - e prossegui-os mais tarde em Paris (onde viveu durante dois períodos), com Lavignac e Dannhauser. Na segunda estada na capital francesa conviveu com Massenet e Saint-Saëns, duas personalidades que viriam a influenciar decisivamente o seu estilo. De regresso a Lisboa, ocupa o lugar de professor de canto no Conservatório, tornando-se mais tarde director daquela instituição.Depois de abandonar o projecto de uma carreira pianística, Machado dedica-se sobretudo à composição, estreando-se com a ópera burlesca "O Sol de Navarra" (1870). Seguiram-se entre outras, "A cruz de ouro" (1873), "O degelo" (1875) - sobre texto traduzido por Antero de Quental e Batalha Reis - e "Maria da Fonte"(1879), esta última uma tentativa infrutífera de criação de uma opereta nacional. Em 1883 estreia com êxito no Grand Théâtre de Marselha a ópera "Lauriane" (com libreto baseado nos "Beaux Messieurs de Bois Doré", de George Sand), uma obra que procurava dar corpo às suas novas concepções dramáticas, inspiradas por concepções estéticas de influência francesa. A obra seria repetida com êxito em Lisboa, no Teatro de São Carlos, e no Teatro Lírico do Rio de Janeiro.Segue-se a apresentação, no São Carlos, das óperas "I Doria" (1887), "Mario Wetter" (1898) - com libreto de Leoncavallo - e "La Borghesina" (1909), comédia lírica em quatro quadros com libreto de Golisciani. Num registo mais ligeiro, destacam-se várias obras com texto em português. As operetas "O Espadachim do Outeiro", "Rosas de todo o ano" (sobre a conhecida peça de Júlio Dantas), "A Triste Viuvinha" ou a farsa lírica "O Tição Negro" encontram-se entre os melhores exemplos do género. O compositor escreveu ainda a ode sinfónica "Camões e Os Lusíadas" (para o tricentenário do poeta) e numerosas canções e peças para piano.Augusto Machado constitui um exemplo privilegiado da superação dos modelos italianos que absorviam os compositores portugueses da época. Com afinidades particulares com a música de Bizet, Chabrier e Massenet, a sua obra evolui em direcção a um estilo próprio, caracterizado por uma subtileza harmónica e orquestral sem precedentes na música teatral portuguesa. Por outro lado, as suas obras para teatro ligeiro realizam com maior solidez o projecto nacionalista empreendido pelos seus contemporâneos Joaquim Casimiro ou Alfredo Keil.