As aventuras de Jackie Chan nas garras de Hollywood
É "pancadaria-de-criar-bicho" mas dissolvida nas estilizações coreográficas de um musical sem música. Numa Los Angeles de "cartoon" reúnem-se Jackie Chan, a dimensão burlesca das artes marciais de Hong Kong agora nas garras de Hollywood, e Chris Tucker, variação sobre o estereótipo do cómico negro. É um par improvável numa das releituras mais interessantes do burlesco clássico. Passa por aqui Buster Keaton.
Numa conferência de imprensa para "Hora de Ponta", em Paris, Jackie Chan e Chris Tucker estão em forma, apesar de um frio gelado. O aceno de Tucker, "Hey man!", ouve-se quando ele entra na sala, enquanto Chan não pára de sorrir, deslizando com os passos leves de um bailarino. A superestrela asiática de 44 anos está irrepreensivelmente vestida e está serena, enquanto o seu "partenaire" de 25 anos, americano, com uma gola de pele, não se cansa da atenção das câmaras. É uma espécie de sociedade da congratulação mútua, já que estão todos espantados pelo sucesso de "Hora de Ponta". Apesar de ambos saberem que tinham em mãos algo de importante.Ei-los a falar de "Hora de Ponta" como uma versão dos anos 90 de "48 Hours", a comédia policial que Walter Hill realizou em 1982, em que Eddie Murphy não fechava a boca por um minuto. "Hora de Ponta" também tem ressonâncias com a série "Arma Mortífera", mas a diferença é o par, uma das melhores combinações que o género viu até hoje: Jackie Chan como um lacónico detective de Hong Kong e Chris Tucker, o polícia negro que fala como uma matraca.Desde que Samuel L. Jackson o enfiou na bagageira de um carro, em "Jackie Brown", para o calar de uma vez por todas, Chris Tucker não parou de falar deste então. Este "stand-up-comedian" transformado em actor, cuja voz esganiçada bate aos pontos a de Eddie Murphy, tornou-se um nome fortíssimo nas bilheteiras americanas e Chan fez aquele que é o seu maior sucesso nos EUA. O segredo do êxito tem a ver com a sintonia entre os dois "performers". O trabalho foi de Brett Ratner, que tinha dirigido Tucker em "Money Talks". "Em vez de ser um vadio cheio de lábia, aqui Chris é um polícia e uma personagem muito mais suave", explica Ratner. "E quando vi Jackie Chan pela primeira vez, disse: 'Adoro os seus filmes de Hong Kong mas uma sequência de luta de 20 minutos não resulta na América. Na América uma luta é: 'Eu esmurro-te, tu esmurras-me, eu respondo, rolamos pelo chão e a luta acaba. Por isso, o mais importante é condensar esses 20 minutos em dois minutos.' Jackie percebeu que tínhamos de nos concentrar no jogo de actor e na química entre as personagens. Na verdade, o que faz funcionar o filme é a combinação entre a comédia física de Jackie e a comédia verbal de Chris."Tucker interpreta o tipo irritante que acaba por cair nas graças dos espectadores. Na verdade, a sua verborreia é uma espécie de estratégia de empate para lhe dar, e ao seu sócio, tempo para delinearem o que vão fazer a seguir. "É uma personagem muito 'cool', um polícia rebelde que se veste de maneira muito própria e guia o seu próprio carro desportivo, enquanto o polícia de Jackie Chan vem de uma cultura completamente diferente", diz Tucker. "Ele ensina-me algo sobre honra e respeito para que a minha personagem compreenda no fim que ser um polícia do LAPD [Los Angeles Police Department] é melhor do que ser um agente do FBI."Chan interpreta a figura de um lendário detective, o inspector Lee, que vai de Hong Kong a Los Angeles para encontrar a adolescente de 11 anos, filha do seu amigo cônsul chinês, que foi raptada. O FBI, no entanto, não quer interferências, por isso contrata o detective Carter (Tucker) para servir de estorvo - e mantê-lo fora da acção. Escusado será dizer que este par improvável não vai ficar fora da acção e que os dois vão acabar por gostar um do outro."Hora de Ponta" é uma obra de surpreendente frescura e isso tem a ver com o encontro e a mistura de culturas, dentro e fora do ecrã. Ajudou o facto de ambos os actores gostarem de improvisar - Tucker com o diálogo e Chan com a acção -, embora isso não tivesse sido sempre fácil, porque raramente um entendia o que o outro estava a dizer. Chan estava tão nervoso pelo facto de interpretar em inglês que aprendeu os seus diálogos de cor. Na conferência de imprensa, o professional Chan, que desde os seis anos estudou sob a rigidez clássica da Ópera de Pequim e que utilizou essa disciplina para se tornar um 'one-man movie-making machine' em dezenas de filmes, corou enquanto demonstrava a sua nova habilidade em inglês em frases como "Qual é o problema, preto?" É óbvio no filme que os dois se divertiram.Ao longo dos anos, Chan sentiu uma grande responsabilidade em relação ao cinema de Hong Kong, de que foi uma das forças decisivas, trabalhando com gente como John Woo, Michelle Yeoh (a actriz de "Tomorrow Never Dies"), e influenciando gente como Quentin Tarantino. Um fã de Buster Keaton e Charlie Chaplin, desenvolveu um género de filme, o "estilo Jackie Chan", seguindo três regras: seria um herói relutante - mas sempre um herói - que tanto fugiria de uma luta como a aceitaria de braços abertos; teria de haver sempre uma mulher jovem ou uma criança em perigo, na maior parte das vezes apanhadas na luta entre gangs rivais e faria sempre as suas próprias proezas. Estas regras aplicaram-se a anteriores sucessos internacionais, como "Rumble in The Bronx", e aplicam-se a "Hora de Ponta" também.Jackie Chan enfatiza que para se fazerem proezas e saltos é importante perceber o trabalho de câmara. "Na América os duplos só percebem de combates", diz, insistindo que tem de haver um ritmo na acção e que ele não pode ser demasiado violento. "Somos responsáveis perante as crianças porque toda a gente aprende com o que fazemos. Não me impressionam os acidentes de carros", diz, batendo as mãos. "Não faz mal que haja sangue nesse caso, porque não é uma luta." Bate as mãos outra vez e continua, muito animado e num inglês trapalhão: "Nos filmes de Jackie Chan não sexo, não palavras feias, não f...f...f... Não. Sempre limpo."O charme de "Hora de Ponta" deriva, também, do seu lado não tecnológico. Chan é certamente muito dedicado às suas crenças, já que em 36 anos de carreira como "performer" e acrobata partiu todos os ossos do corpo e continua a recusar-se a usar efeitos especiais. É real, ainda que pareça incrível, a cena final em que ele escorrega do alto de um edifício através de uma faixa de seda!