Terrence Malick reencontrado
Teve uma estreia cinematográfica comparada a "O Mundo a seus Pés", depois disso fez mais um filme e desapareceu para o Texas. Mas regressou 20 anos depois e Berlim reencontrou-o para lhe atribuir o Urso de Ouro. O filme de Terrence Malick estreia na próxima sexta-feira em Portugal..
A última vez que alguém viu Terrence Malick numa sala de cinema de um festival foi numa noite de 1978, em Cannes, quando verificava as condições técnicas de projecção do seu filme, "Days of Heaven", que ia ser apresentado na manhã seguinte em competição. Nesse ano, quando se anunciou uma Palma de Ouro ex-aequo, todos pensaram que "Apocalypse Now", de Coppola, ia partilhar o prémio principal com o filme da Malick. Acabou por ser escolhido "O Tambor", de Volker Schlondorff. Foi a parir daí que Terrence Malick desapareceu para Austin, no Texas, voltando as costas ao cinema e a Hollywood. O mito do criador individualista isolado do mundo exterior - a muito americana "síndrome de Howard Hughes" -, com fobia aos media e às entrevistas e em retiro espiritual, começou a nascer então entre os entusiasmados das suas duas e únicas obras cinematográficas: "Badlands" (Os Noivos Sangrentos), de 1973, uma estreia cinematográfica comparada a "O Mundo a seus Pés", de Orson Welles, e "Days of Heaven", que trazia um pouco mais que estreante Richard Gere.Agora, com o Urso de Ouro a "The Thin Red Line" - que estreará em Portugal na sexta-feira com o título "A Barreira Invisível" -, Berlim reencontrou Malick. O cineasta perdido, hoje com 55 anos, esteve de facto na cidade para a sessão de gala do filme, mas não apareceu na conferência de imprensa onde, mesmo assim, um jornalista, provavelmente encadeado pelas histórias que se contavam, pelo "mistério Malick", interrogou um "fantasma". Fez uma pergunta a Terrence Malick. "A quem é que dirige essa pergunta? O senhor Malick não estão aqui connosco", respondeu Sean Penn, um dos intérpretes do filme. "Pensei que ele fosse um de vocês, julguei vê-lo...", desculpou-se o jornalista. Foi um lapso, mas o fantasma assombrou as entrevistas que depois deram os intérpretes do filme, com Nick Nolte ou Elias Koteas obrigados invariavelmente a responderem às perguntas: "como é Terrence Malick; porque é que ele esteve tanto tempo afastado do cinema?"Nick Nolte foi respondendo, considerando Malick "o último dos cineastas absolutamente livres, juntamente com Stanley Kubrick", de quem se espera também para este ano "Eyes Wide Shut" - vai ser um ano de regresso dos excêntricos porque também aí vem "Star Wars - Episode One: the Phantom Menace", de George Lucas. Nolte contava como no meio de uma produção de 50 milhões de dólares que adapta um romance de James Jones sobre a ofensiva americana a Guadalcanal, na Segunda Guerra Mundial, Malick, "um homem profundamente religioso", mandou os actores lerem a "Ilíada", de Homero, para depois os convidar a improvisar frente às câmaras, ou como partiu com elas para filmar pássaros e árvores e gravar o som dos animais. A natureza, com o seu murmúrio expectante, é para Malick um paraíso de que o homem foi escorraçado. A guerra, em "The Thin Red Line", é filmada de forma indirecta, como um eco sonâmbulo dessa queda. O filme frustrará as expectativas de quem for atrás do género (filme de guerra) ou do "cast" de estrelas: Nolte, Penn, John Travolta, George Clooney ou Woody Harrelson, que para Malick foram apenas hipóteses diferentes para ele moldar um único rosto, o do homem. Para chegar aí, filmou uma quantidade impressionante de película e na montagem encurtou uma série de participações ou fê-las desaparecer por completo, como é o caso de Bill Pullman, que aparece durante alguns segundos numa das cenas iniciais.É um filme de um visionário e de um excêntrico, foi a obra mais relevante da competição e é absolutamente justo ter sido distinguida com o prémio principal. É daquele tipo de filmes que nas estratégias de compromisso dos festivais obrigam habitualmente os júris a fugirem para o "centro", aquilo que é mais consensual. Por momentos, chegou a pensar-se ontem, à medida que a lista de prémios era anunciada, que a menção especial ao trabalho de fotografia de John Toll, era uma forma de "arrumar" o filme. Ora, o júri desta 49ª edição não fez isso e até delineou um palmarés coerente (a nódoa talvez seja a decisão sombria de atribuir o prémio de realização a Steven Frears, por "The Hi-Lo Country"). Fez o que tinha a fazer: relegou para menções especiais o que era mais caucionado pela actualidade, pelo social e pelo político e menos pelo cinema ("Ça Commence Aujourd'hui", de Tavernier , ou "Journey to the Sun", da turca Yesim Ustaoglu). Não esqueceu outro idiossincrático: Cronenberg, que só se pode queixar de, depois de "Crash", em Cannes, estar condenado a receber prémios especiais pelos feitos artísticos dos seus filmes. Não perdeu a cabeça com o efeito bola de neve que é "Shakespeare in Love", de John Madden, e percebeu o que havia a perceber, ou seja, que o argumento de Marc Norman e Tom Stoppard é que era decisivo. Premiou uma primeira obra, "Karnaval", de Thomas Vincent, que é uma revelação e bem melhor do que os outros franceses, Chabrol e Tarvenier, que estiveram em competição. E, ao contrário de Cannes, Berlim pode ficar com os louros de ter sido o festival que consagrou o movimento Dogma 95, ao atribuir o segundo prémio mais importante a "Mifune", Soren Kragh-Jacobsen, mais um exemplo, depois de "Os Idiotas", de Lars Von Trier, e "Festen", de Thomas Vinterberg, de um novo puritanismo cinematográfico que quer reeditar a Nouvelle Vague dos anos 60.Se, como dizem alguns críticos do Dogma 95, as regras que se impõem os signatários deste movimento têm dado origem a filmes bastante cínicos que sacrificam o bom gosto, então aí está "Mifune", que é mais caloroso e tem final feliz. Nos negócios de Berlim, onde "Mifune" foi dos títulos mais quentes, foram concretizados mais dois projectos sob o signo Dogma 95: "The King Is Alive", de Kristian Levring, uma versão no deserto de "King Lear", e "The House of Klang", de Paul Morrissey - outro regresso, o do ex colaborador de Andy Warhol -, uma história passada no mundo na moda. O filme português, "Glória", da cineasta Manuela Viegas, que esteve em competição, não recebeu nenhuma distinção.