Torne-se perito

Antena 2, "Talk Radio"

O SIC Onze Horas é um formato da autoria de Emídio Rangel, escolhido para rivalizar com o Praça da Alegria da RTP. Histórias pessoais, conselhos para viver melhor e informação são as principais características da primeira aposta da SIC numa produção específica para as manhãs. Júlia Pinheiro é a apresentadora de serviço.

A ideia da Antena 2 como estação de música clássica não corresponde à realidade. Embora a música chamada erudita seja a base sobre que crescem as 24 horas de emissão, a estação da RDP tem uma forte presença, quase um predomínio, da palavra falada e lida. Grande parte da componente "portuguesa" duma rádio com música quase totalmente criada noutras partes da Europa faz-se aqui através dalguns noticiários, mas muito em especial através dum substancial conjunto de programas.Até aos anos 80, a rádio clássica da RDP assemelhar-se-ia a uma "play list" do clássico se para isso tivesse tido competência; mas, na estrutura, funcionava dessa forma. Os apresentadores eram locutores que diziam "acabaram de ouvir?" e "ouviremos de seguida?". Este tipo de rádio tem uma enorme virtude: a de servir os ouvintes de música clássica, aqueles que realmente a "amam", com o único material que os pode satisfazer completamente - a própria música.A virtude é tão grande que existem dezenas de estações de música clássica no mundo inteiro baseadas nesse conceito simples. Em Portugal, esse conceito morreu quando João Paes inventou a Rádio Cultura, que bem se podia ter chamado Rádio Tortura. Paes foi afastado, mas o conceito manteve-se intacto.Na Antena 2, a música sem palavras quase só existe por impossibilidade de estragarem as 24 horas de seguida. É de madrugada, quando os locutores não querem estar de serviço e é mínima a audiência, que se pode ouvir a música sem palavras. Aí, como na rádio Luna, cai-se no defeito contrário. Ninguém nos diz o que ouvimos. Felizmente, há também a Euro-Rádio, com concertos gravados pela Europa, as integrais de concertos, quartetos, etc. de determinado autor e as óperas do Met. Grande parte da restante emissão é preenchida por programas. Os períodos de maior audiência estão preenchidos há alguns anos por um novo conceito de "rádio clássica": são os programas Allegro Vivace, matinal, e Ritornello, crepuscular. Noutra altura, dedicarei uma análise específica a estes e outros programas da Antena 2, realizados em geral por colaboradores externos, e entre os quais há alguns bem instruídos e construídos. Embora ainda abundem gritantes arcaísmos radiofónicos (na frase redonda, nos indicativos, nas ligações textos-música), são em geral informativos e satisfatórios. A ideia geral da direcção e dos autores é a de não correr riscos: assume-se que o programa tem de ser "careta" só porque a rádio é a "da música clássica" e "da cultura". Pelo contrário, outros programas assumem outros tipos de linguagem e relacionam a música com outras formas de conhecimento. No fundo, assumem com naturalidade o facto basilar de que a rádio deve mudar com a sociedade e não manter-se atavicamente ligada a conceitos bafientos, ou se calhar apenas ignorantes, de "cultura" ou de "música séria".Nem todos são assim. Em Órbita, de Jorge Gil, um dos principais valores radiofónicos portugueses, só chegou à Antena 2 um quarto de século depois de se ter consagrado na sociedade. A Antena 2 não estava preparada, em 1974 ou em 1984, ou até em 1994, para um programa de vanguarda, bem estruturado, trabalhado, inteligente e culto como é o Em Órbita: a "cultura legítima" precisa de 25 anos para perceber que o tempo passa. O programa é ele próprio um conceito de rádio. Primorosamente escrito, resultando de um trabalho intenso e seriíssimo do seu autor, Em Órbita é construído como uma unidade temporal e estética de fruição auditiva e intelectual. O ouvinte "normal" retira dele a boa música, bem escolhida e enquadrada, o ouvinte mais atento retira a unidade estética e a apreciação cultural.Os programas de Joel Costa também se destacam na Antena 2 por serem ali "ousados" e desenquadrados: Questões de Família, Questões de Moral são do melhor que se faz em Portugal enquanto programas de rádio, que são (deveriam ser sempre) produtos completos, obras de tese, elípticas na sua construção e, no caso, com uma complementaridade entre os textos e a música a caminho da perfeição. Em Órbita, de Jorge Gil, e as Questões, de Joel Costa, representam tudo o que a Antena 2 não é, cabendo à estação o mérito de, a medo e envergonhada, os pôr no ar.

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