Duas guerras na fronteira dos felupes
Na fronteira com Casamansa, vê-se melhor que há duas guerras que são a mesma. O Senegal bombardeia do lado guineense, os guerrilheiros descem a Bissau para enfrentar o exército de Dacar e refugiados encontram-se fugindo em direcções opostas. "Quando acabar aqui, vai ser ainda pior do lado de lá."
Às sete da manhã, quando o sol está prestes a entrar na igreja, o padre José Fumagalli toca o primeiro hino no pequeno órgão electrónico que pôs ao canto do altar. Na mochila trouxe também o missal em língua felupe, as hóstias, o cálice e a caixinha de cinzas para verter sobre a cabeça dos fiéis. Ainda antes de a missa começar, o missionário acompanha já com o corpo - calça tamancos brancos - o ritmo dos tambores que dois rapazes aqueceram numa fogueira, para lhes tirar a humidade da noite. A fronteira do Senegal fica perto e, sobre ela, ouviu-se horas antes o estrondo de uma outra guerra - que é a mesma que se combate lá longe em Bissau.Na região noroeste da Guiné, ao longo da fronteira com o Sul do Senegal, é mais difícil do que em Bissau distinguir o conflito guineense de um outro, mais antigo, iniciado há década e meia pelos guerrilheiros independentistas do Movimento Democrático de Libertação de Casamansa (MDLC). Pelas picadas da região de Suzana e Varela, guerrilheiros senegaleses pedem boleia para Bissalanca - na linha da frente dos revoltosos guineenses -, circulando por tabancas que servem de retaguarda ao MDLC e que o exército de Dacar fustigou várias vezes desde Junho passado.A linha de fronteira guineense é, para Dacar, mais uma frente de combate contra a Junta Militar, e esta semana foi possível ouvir em Suzana o som da artilharia pesada do lado senegalês. Já não se ouve "aquele maldito avião senegalês que bombardeava as tabancas do lado guineense, de Bijene a Varela", explica o padre Fumagalli, "porque a Junta montou uma rede de mísseis Strella".A guerra de Casamansa, porém, continua a marcar o quotidiano do Norte da Guiné. "A situação humanitária não parece grave. Não parece. Mas isso é um engano", diz o missionário italiano, que chegou à Guiné há mais de 40 anos e conhece por dentro a sociedade felupe. "A desnutrição das crianças neste meio não se vê por uma questão cultural dos felupes, que garantem que os mais novos comem mesmo que mais ninguém coma. Mas há muita escassez de alimentos."O padre Fumagalli recorda que "os refugiados de Bissau", um terço da população do país que se espalhou pelas tabancas do interior, "não ficaram em campos: alojaram-se em casa de parentes e há residências que quadruplicaram o número de bocas. As reservas de comida foram partilhadas com quem chegou." Desde o início do conflito, houve apenas duas distribuições de alimentos no Noroeste, uma em Agosto, da Cooperação Portuguesa, e outra do Programa Alimentar Mundial, através da Cruz Vermelha, em Outubro - quatro meses depois do eclodir da crise."O pouco arroz que os habitantes daqui tinham não é suficiente para ter uma reserva e a chuva, que foi abundante noutras zonas da Guiné, não deu em Suzana-Varela." O padre Fumagalli prevê que em Maio ou Junho próximos as populações não terão já alimentos, ainda por cima a mais de meio ano da próxima colheita e na altura mais intensa de preparação dos campos. "Estarão a trabalhar sem comer", avisa o missionário, contrariando a ideia de relativo desafogo que as agências humanitárias têm do que se passa em Suzana. "Dentro de três meses, a situação será muito mais dramática do que até agora."Os bombardeamentos senegaleses provocaram também o abandono de muitos terrenos férteis ao longo da fronteiras, o que explica que, apesar de haver mais braços com a vaga de deslocados, o ano agrícola tenha sido pobre. A vida em Suzana-Varela é actualmente perturbada por uma dupla crise: há uma vaga de refugiados na Baixa Casamansa - cerca de 30 mil, segundo várias organizações humanitárias - e parte deles atravessou para tabancas guineenses, "porque as pessoas estão fartas de guerra e porque, como se diz, Guiné e Casamansa são peixes que nadam na mesma água", explica José Fumagalli. O padre considera que do lado senegalês "a situação está cada vez mais pesada. O Alto Comissariado da ONU para os Refugiados nunca mais apareceu desde o início da guerra"."Nós ajudámos gente de Casamansa" nos últimos meses, conta um felupe que combateu no exército colonial português, António Sitanhebé. "Houve gente que se refugiou directamente nas nossas casas. Demos-lhes arroz mas depois preferimos dar-lhes terras e palmeiras para furar." António Sitanhebé vive na tabanca de Cassalol, na estrada de Suzana para Varela. Um bombardeamento aéreo senegalês matou uma mulher e feriu gravemente outra, no Verão passado.Acontece, por causa de incidentes como esse, que tabancas fronteiriças do lado guineense sofrem uma sangria de população, que foge para norte. Foi isso que fez a mulher de Ricardo Ampaboine, um felupe de Suzana que, no início da revolta de Ansumane Mané, decidiu alistar-se nas forças da Junta. A mulher de Ricardo está ou em Ziguinchor, principal cidade de Casamansa, ou algures na Gâmbia, porque Ricardo tem família em três países. Para ele, a descida a Bissau para combater as forças lealistas e o exército senegalês foi apenas natural. "Nós e os de Casamansa somos irmãos", justifica Ricardo. "Quando a guerra da Guiné acabar", assegura António Sitanhebé, "a do lado senegalês será ainda mais forte, até Casamansa conseguir a independência."