"Disneylândia" ilegal no Parque Natural

No Parque Natural de Sintra-Cascais, a regra parece ser construir primeiro e legalizar depois. Pelo menos foi esse o caminho escolhido por uma conhecida empresa de informática e pelo seu vizinho com um apelido famoso. Apesar do palácio tipo Disney de uma e da alegada poluição do outro, a Câmara de Cascais ainda lucra alguma coisa em termos de mecenato cultural.

Os proprietários de uma quinta na Malveira da Serra construíram um palácio de fantasia, onde se propõem realizar exposições de arte em colaboração com a Fundação D. Luís I, estrutura criada pela Câmara de Cascais para promover iniciativas culturais. Mas aquela propriedade é alvo de seis processos de demolição da autarquia, por construções não autorizadas pelo Parque Natural de Sintra-Cascais (PNSC). Os visados queixam-se da "inveja" de um membro da família Champalimaud, a quem acusam de poluir as águas da serra de Sintra.O PNSC está a analisar três processos de construções clandestinas em áreas prioritárias para a conservação da natureza. Dois dos casos respeitam a construções no Penedo, concelho de Sintra (ver texto nestas páginas). O terceiro tem a ver com diversas construções clandestinas na Quinta da Felicidade, na Malveira da Serra, propriedade da Sociedade Lusobritânica de Informática (Solbi).Em 1996, a Solbi apresentou à Câmara de Cascais um projecto para ampliação e legalização de alterações efectuadas na Quinta da Felicidade. Nesta propriedade, apenas uma moradia estava devidamente legalizada. A autarquia remeteu o processo para apreciação do PNSC, cujo parecer é vinculativo. Os técnicos da área protegida chumbaram a proposta, porque esta implicava grandes movimentos de terras, novas construções e aumentos de pisos nas existentes.Tudo isto porque o terreno em causa está classificado como Área Prioritária para a Conservação da Natureza. Estes espaços, segundo o regulamento do plano de ordenamento do PNSC, "apresentam maior riqueza e sensibilidade do ponto de vista dos valores naturais e paisagísticos". Afinal, tratam-se de terrenos incluídos na faixa costeira, na serra de Sintra ou em zonas de elevado declive e risco de erosão. Daí que neles sejam proibidas, entre outras actividades, "a implantação de novas construções fora dos aglomerados urbanos existentes" e "a realização de quaisquer movimentos de terras".A comissão directiva do PNSC confirmou, em Julho de 1997, a posição dos técnicos, emitindo parecer desfavorável à pretensão da Solbi. Com uma chamada de atenção muito clara: "Construções que venham a ser feitas no local sem autorização do PNSC serão embargadas e demolidas." Só que o aviso não demoveu a Solbi. Segundo um vizinho, que se queixou à área protegida, na Quinta da Felicidade, surgiram de um momento para o outro "um enorme castelo de fantasia, com diversas torres", ao estilo "Disneylândia", e um edifício de dois pisos, com cerca de "450 metros quadrados".Um técnico do PNSC adiantou que na quinta foram também plantadas espécies exóticas proibidas, entre as quais eucaliptos. "Estamos a contactar a Câmara de Cascais para saber quais as iniciativas que já tomou", revelou o director do PNSC, José Manuel Marques, acrescentando que "tudo indica que aquilo é uma situação totalmente ilegal". Razão pela qual, se a autarquia nada fizer, o PNSC está disposto a avançar "com um auto de demolição" e posterior participação ao Ministério Público.No entanto, a situação tem sido acompanhada pela fiscalização da Câmara de Cascais. Um responsável daqueles serviços confirmou que a Solbi tem vindo a efectuar "com todo o desplante" obras não licenciadas, em pleno Parque Natural. Até ao momento foram elaborados seis processos municipais de demolição. Dois dos quais já possuem decisão final e estão mesmo nos serviços "para execução da demolição". O primeiro (131/95) respeita a um telheiro em betão e lusalite. O segundo (132/95) refere-se a uma garagem e arrecadação, com dois pisos. Do processo 133/95 sabe-se que está relacionado com uma casa para habitação. Mas, após ter sido enviado em Novembro de 1995 aos serviços de urbanismo, nunca mais voltou à fiscalização.A ampliação em altura de um depósito de água e casa das bombas originou o processo 271/97. Em Dezembro passado, decorria um prazo de 60 dias para eventual legalização da situação. O processo 80/98, motivado por uma construção forrada a pedra e com um piso encimado por ameias (o palacete ao estilo Disney) encontrava-se nos serviços de urbanismo para informação. Quanto à mais recente construção, com dois pisos e cerca de 400 metros quadrados, deu origem ao processo 370/98, que estava para despacho superior."Está tudo em legalização", afirmou Carlos Maia Nogueira, administrador da Solbi, quando confrontado com os processos de demolição. A Quinta da Felicidade, acrescentou, é um centro de formação da Solbi, onde são ministrados cursos, e vai ser "apresentado um projecto global para a legalização de todas as obras". "Embora o Parque [Natural] não goste, porque não se pode mexer numa papoila, estamos a arranjar aquilo e a dar um pouco de cor ao ambiente", sustentou Carlos Nogueira, adiantando que, no palácio, uma cópia de um existente em Paris, existe um salão com obras de arte destinadas a ser expostas ao público, em colaboração com a Fundação D. Luís I.Não acreditando que as construções venham a ser demolidas - "não estamos no terceiro mundo" -, o dirigente da Solbi considerou estar a ser prejudicado pela "inveja de uma pessoa que se chama Manuel Champalimaud", a quem acusou de também ser visado por ordens de demolição para três construções na sua propriedade, a Quinta da Tapadica, paredes meias com a Quinta da Felicidade. Mas, para Carlos Nogueira, ainda ninguém se preocupou com o "grave delito à saúde pública" feito pelo vizinho: "Foi fazer uma fossa de esgoto da casa dos caseiros com brita, permeável para infiltrações dos detritos nos lençóis de água onde os serviços municipalizados de Cascais vão buscar a água para distribuir à população de Cascais e arredores."As relações públicas da autarquia esclareceram que a Quinta da Tapadica possui efectivamente "um processo de demolição em curso". O processo conjunto 84/98 resulta da construção, sem licenciamento, de uma casa de caseiros, de uma garagem e da substituição de um telheiro. Para Manuel Champalimaud, estas obras também estão contempladas num "processo de legalização" e as acusações de Maia Nogueira apenas visam "tapar o que ele fez". O proprietário da Quinta da Tapadica negou estar a poluir águas da serra. A fossa construída, argumentou, "é comum às de outros sítios", pois "a zona não é servida por esgotos".Por seu lado, Salvato Telles de Menezes, administrador-delegado da Fundação D. Luís I, adiantou que a Solbi propôs a realização na Quinta da Felicidade de exposições, mas "não há ainda qualquer decisão". Explicando que tudo depende da "qualidade do local para o efeito e da qualidade das obras para a exposição", o mesmo responsável admitiu que, se houver qualquer processo de demolição para a quinta, a Fundação não se associará a qualquer iniciativa. Isto apesar de a Solbi ser um dos membros do conselho de fundadores da D. Luís I.Aliás, a empresa de Maia Nogueira tem manifestado muita generosidade para com a Câmara de Cascais. Em Dezembro de 1996, a autarquia recebeu 150 computadores "Orpheus Music Painter", oferecidos pela Solbi, destinados a crianças das várias escolas do concelho. Já este ano, em Janeiro, o presidente da autarquia, José Luís Judas (PS), propôs ao executivo um "protocolo de mecenato" com a Solbi, no qual a empresa se compromete a doar uma escultura de Rogério Timóteo, a colocar em frente ao Tribunal da Comarca de Cascais. A peça, avaliada em 40 mil contos, havia sido ofertada à autarquia em Julho de 1998, tendo na altura a Solbi manifestado que o tema seria "posteriormente definido" em conjunto.Resta agora saber que destino estará reservado às construções clandestinas da Malveira da Serra. Para já, Carlos Maia Nogueira mostrou-se seguro da sobrevivência da sua "Disneylândia", para a qual reserva um lugar na história, apesar da inquestionável ilegalidade: "Qualquer dia aquilo ainda vai ser património nacional."

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