Uma santa barbuda e portuguesa
A 20 de Julho próximo, as lésbicas britânicas celebrarão pela primeira vez o dia de Santa Uncumber, o nome anglo-saxónico para a portuguesíssima Santa Liberata ou Vilgeforte. "É um exemplo notável de mulher independente e insubmissa", diz a líder de uma das organizações homossexuais dispostas a contrariar com esta táctica o "meloso" e tradicional Dia de São Valentim.
Grupos feministas e organizações de homossexuais e transexuais britânicos estão a tentar promover uma santa portuguesa como alternativa a S. Valentim. A ideia foi da autora feminista norte-americana, Robin Morgan, mas está a conquistar um número crescente de adeptos na Grã-Bretanha. A santa em causa, St. Uncumber - à letra, "não oprimida", Santa Liberata ou Santa Vilgeforte, em português - era, de acordo com a lenda, uma infanta filha de rei pagão em território português, e que o monarca oferecera em casamento ao rei da Sicília. A princesa, «bela como uma flor da Primavera», segundo um martirológio seiscentista, não queria casar (porque queria ficar solteira, casta e virgem, dizem os católicos; porque não queria render-se aos ditames masculinos ou porque era lésbica, afirmam os hermeneutas mais modernos). Na véspera do casamento, St. Uncumber rezou intensamente pedindo a Deus que a transfigurasse e tornasse fisicamente repugnante. O pedido foi deferido. St. Uncumber acordou naquela manhã com barba e bigode farto e o rei da Sicília desprezou-a. O rei seu pai mandou crucificá-la. Liberata é irmã de Santa Quitéria. Tratava-se decerto de uma família disfuncional. É que história dela é semelhante: o pai queria casá-la, ela recusou fazê-lo. Como castigo, o desesperado progenitor decapitou-a pelas suas próprias mãos. Segundo a hagiologia oficial, Quitéria terá recolhido a cabeça, que colocou no avental, e, literalmente de cabeça perdida, caminhou assim sem ela até à igreja mais próxima, guiada por um anjo. Acabaria por morrer ali. No local onde foi decapitada terá nascido uma fonte... santa, claro.A mártir portuguesa Liberata está representada na igreja de Worstead e na capela de Henrique VII da abadia de Westminster, em Londres. O culto de St. Uncumber era muito popular nos séculos XV e XVI e o escritor e estadista Sir Thomas More dedicou-lhe alguns versos. Agora parece que a devoção vai renascer. «É fantástico descobrir a história secular de uma lésbica», disse ao PÚBLICO Gillian Rodgerson, directora da revista «Diva», a revista para lésbicas com maior difusão na Europa. «St. Uncumber é um exemplo notável da mulher independente e insubmissa e passaremos a celebrar o seu dia». No próximo dia 20 de Julho - o dia da santa barbada, a santa portuguesa.Uma disputa acesa entre duas igrejas enssombrou entretanto este ano o Dia de S. Valentim nas ilhas britânicas. Tanto a igreja de Blessed John Duns Scotus, perto de Glasgow, como a de Whitefriars Street, em Dublin, afirmam possuir as relíquias genuínas do santo. Os escoceses insistem que os ossos de S. Valentim foram oferecidos em 1868 à igreja de S. Francisco, quando o chefe de uma poderosa família francesa dediciu livrar-se de grande parte das relíquias católicas que possuia. Quando a igreja foi encerrada, em 1993, os ossos do santo foram parar a uma caixa de cartão, esquecida sobre um armário da igreja vizinha de Blessed John. Mas ontem, Dia de S. Valentim, houve procissão e cânticos para a inauguração oficial do altar especial onde passarão a estar expostos os restos mortais do santo, dentro de um pequeno caixão de madeira com aplicações em ferro trabalhado e a inscrição latina «Corpus Sancti Valentini Martyris». «Esta é a primeira vez que ele terá um local a sério na nossa igreja», explica o padre Brian McGrath, da igreja de Blessed John Duns Scotus. «Acho que será melhor para ele».Os franciscanos de Glasgow esperam que o novo santuário dedicado ao mártir padroeiro dos amantes atrairá visitantes do mundo inteiro. «Não ligamos muito a esta mania actual das relíquias», diz ainda McGrath. «Mas as pessoas hoje em dia parecem muito interessadas. Ficam muito entusiasmadas, seja com o carro de Elvis Presley ou com a bota de Eric Cantona. Acho que este interesse pelas relíquias sagradas tem muito que ver com isto». Mas o anúncio da cerimónia de ontem enfureceu os carmelitas de Dublin. «Os nossos paroquianos estão muito perturbados com esta ideia de uma igreja diferente afirmar que tem os ossos de S. Valentim», diz o padre Frank O'Gara, encarregado do túmulo do santo, em Dublin. De acordo com os irlandeses, os ossos de S. Valentim foram oferecidos pelo Papa Gregório XVI, em 1836, na sequência da visita que o padre John Spratt fez ao Vaticano. O Papa apreciou de tal forma a oratória daquele padre irlandês que decidiu presentear a igreja dele, em Dublin, com uma caixa de madeira, atada com uma fita de seda vermelha e selada com a chancela papal. Lá dentro, conforme explica o sumo pontífice numa carta de Janeiro de 1836, «seguem os restos do corpo de S. Valentim que eu mandei exumar do cemitério romano de S. Hipólito». A igreja de Whitefriars Street costuma ter, todos os anos, um número anormal de visitantes no dia 14 de Fevereiro. Pelo altar de S. Valentim passam dezenas de casais que vêm renovar os votos de casamento e trocar juras de amor eterno em frente do caixão negro e dourado. O túmulo do santo tem tanta importância que as autoridades do turismo de Dublin promovem há alguns anos «fins-de-semana românticos de S. Valentim» e o próprio ministro do Turismo, McDaid, anunciou em Janeiro passado a intenção de transformar a cidade irlandesa na «capital internacional do amor romântico». «Não temos nada a perder no confronto com Paris ou Veneza», assegurou McDaid. «Grandes histórias de amor, como a de Tristão e Isolda, foram baseadas em Dublin. Além disso temos o túmulo do padroeiro dos namorados e dos amantes».Mas será que têm mesmo? Até pode ser que todas as igrejas tenham razão. «Roma por vezes dividia as relíquias em várias partes para fazer uma distribuição por vários interessados», explica o padre Peter Hall, da igreja católica da Escócia. «O que as pessoas devem fazer é sentar-se a uma mesa e comparar notas e documentos», recomenda. Pouco se sabe sobre a vida deste mártir cristão que morreu no dia 14 de Fevereiro de 269, mandado decapitar pelo imperador Cláudio II. Durante séculos julgou-se que S. Valentim estava enterrado na catedral de Terni - a cidade natal do santo, nos arredores de Roma. Agora duas outras igrejas reclamam essa glória.A discussão tem uma razão de ser. A tradição do Dia de S. Valentim é uma invenção anglo-saxónica recente, abençoada pelos fabricantes e vendedores de cartões, chocolates, flores, anjinhos e corações cor-de-rosa. No dia 14 de Fevereiro do ano passado venderam-se 20 milhões de libras [cerca de 5,7 milhões de contos] de flores em todo o Reino Unido. Este ano calcula-se que o montante será ligeiramente inferior porque o Dia coincide com um domingo (as mulheres, amantes e namoradas não poderão assim receber flores no local de trabalho).