A janela que se fechou
Retratos, paisagens, janelas e quiosques - assim foi a obra de Maluda que, no seu estilo geometrizante inconfundível, constituiu um caso único na pintura contemporânea portuguesa. Foi também uma obra que não se pode desligar da personalidade da pintora, alheia a todos os grupos que não os dos amigos. Sempre à margem da dinâmica própria à vida artística portuguesa, Maluda foi, talvez como nenhum outro artista, uma pintora popular.
A pintora Maluda faleceu ontem em Lisboa, de madrugada, após doença prolongada. Contava 65 anos, e uma popularidade invejável. O corpo encontra-se em câmara ardente na Basílica da Estrela, onde hoje será celebrada missa por volta das 15h. O funeral, que seguirá para o Talhão dos Artistas no Cemitério dos Prazeres, terá lugar entre as 17h e as 18h.Numa entrevista recente, Maluda contava que já festejara os 40 anos de carreira - e que, caso fizesse um outro trabalho qualquer, já teria direito à reforma. Mas os pintores não se reformam.... E isto, embora tivesse sempre considerado a pintura como um ganha-pão, aquela profissão que lhe permitia viver e ir satisfazendo as suas "pequenas ambições", como dizia. Tinha um horário para pintar que, não fosse o manter-se também aos fins-de-semana, seria bem semelhante ao horário de qualquer repartição pública, porque não acreditava na pintura por inspiração. Quando acabava, saía para a noite, ajudando a manter o mito do artista boémio, amigo de copos e de farras. E criou um nome que, para o bem e para o mal, tem sido identificado com o da arte portuguesa contemporânea. Decerto muito mais que o de Paula Rêgo. Provavelmente mais que o de Maria Helena Vieira da Silva.Raros serão os que nunca tenham ouvido falar de Maluda. Uma fotografia de uma janela lisboeta, pelas sete da tarde de um dia de Julho, de sombras bem acentuadas, e lá se diz: "Cá está uma Maluda"... Maria de Lourdes Ribeiro, como era o seu nome, teve provavelmente a obra mais democrática da história da arte portuguesa, como afirmou ontem o ministro da cultura, Manuel Maria Carrilho. Um estilo geométrico, de onde o motivo nunca desaparece, paisagens ou motivos urbanos vazios de gente, porque de outro modo talvez não soubesse fazer ou não lhe interessasse fazer, sempre identificáveis, sempre decorativos, sempre facilmente compreensíveis, caracterizaram a sua pintura. Que, reproduzida à exaustão, se encontra em qualquer quiosque para turistas dos Restauradores, nos selos de todas as estações de correios do país, nos portfólios de todas as lojas de molduras. Maluda foi, com toda a certeza, uma artista popular, como populares foram os seus amigos - de Amália a Marco Paulo (ver caixa).E, como artista popular que foi, nunca encontrou o seu lugar nos meios mais sofisticados e exigentes da arte contemporânea portuguesa. Começou a sua carreira no momento certo, nos anos 50, quando a figuração suscitava um renovado interesse internacional. Pintou primeiro retratos, depois seguiu para as paisagens urbanas que lhe trouxeram a fama - e as encomendas. Lisboa, Faro, Olhão, quase todo o Algarve e o Alentejo foram geometricamente estilizados, depois pintados em cores sem mancha, de onde o gesto da pintora parecia ausente. Seguiram-se, quase que por acaso, as janelas (ver depoimentos), onde os jogos de luz e os reflexos nas vidraças se podiam entender como a própria metáfora da pintura. Os quiosques de Lisboa, reproduzidos aos milhares nos selos dos Correios, acabaram por divulgar o seu nome junto do grande público. José-Augusto França, historiador, crítico de arte e professor universitário, acompanhou a sua carreira e chegou, inclusive, a prefaciar duas exposições suas, na Fundação Calouste Gulbenkian, em 1973, após a conclusão da Bolsa de Estudo em Paris e, alguns anos mais tarde, no Centro Cultural de Belém. Mas a ausência de renovação da sua obra acabaria por a esvaziar de sentido, e por limitar a sua circulação a um círculo mundano, decerto vasto, mas sem qualquer reconhecimento nos meios artísticos mais conceituados. Maluda não é mencionada, por exemplo, nas histórias da arte portuguesas que mais recentemente se publicaram.Contudo, este não parecia ser um facto que a incomodasse. Dizia vender os seus quadros caros, muito caros, para evitar especulações. E vendia tudo o que pintava na sala burguesa e bem mobilada do apartamento de Lisboa. Mesmo que repetisse indefinidamente, até à milionésima versão, o desenho de uma janela fechada.